Refugiados: uma solução para o problema demográfico da Europa?
O livro de Paul Collier deve ser visto como um contributo relevante para (re)pensar, de forma abrangente, o impacto das migrações em massa nas sociedades de acolhimento.
A chanceler alemã, Angela Merkel, afirmou publicamente que espera receber, até ao final deste ano, 800 mil pedidos de asilo. Mais recentemente, o vice-chanceler e líder do SPD, Sigmar Gabriel, referiu, por sua vez, estar convicto que o seu o país teria capacidade para acolher cerca de 500 mil pessoas durante vários anos. Várias explicações têm sido avançadas para esta generosa política de acolhimento. A melhoria da imagem internacional da Alemanha, a qual foi seriamente afectada durante a crise da Zona Euro, é uma das mais referidas. Outra explicação, frequentemente apontada, sugere, mais pragmaticamente, razões económicas e demográficas. Podemos encontrá-la, por exemplo, neste artigo da Euronews, “Alemanha: A necessidade por detrás da solidariedade” (7/09/205), . Este explica assim as razões do governo alemão: “Por detrás desta onda de solidariedade estão também motivos económicos e demográficos. A primeira economia da Europa, com uma taxa de desemprego de apenas 6,4% e uma população a envelhecer, precisa desta mão-de-obra e vai precisar mais ainda dentro de alguns anos. Os empresários alemães pedem um acesso rápido e simples destas pessoas ao mercado de trabalho. Com 670.000 nascimentos contra 870.000 óbitos por ano, a população alemã tem dificuldade em renovar-se. A taxa de fertilidade é muito baixa, apenas de 1,36 por cada mulher em idade fértil. [...] As iniciativas locais para recrutar estrangeiros multiplicam-se. Por enquanto, a lei exige que, antes de se dar emprego a um refugiado ou imigrante, haja uma prova de que nenhum candidato alemão é indicado para aquele posto de trabalho. Uma lei que pode ter os dias contados.” Deixando de lado a questão da imagem, importa reflectir neste último argumento. Como é bem conhecido, não é só a Alemanha que tem um problema demográfico, mas a generalidade da Europa, Portugal incluído. A baixa natalidade tem consequências a vários níveis, desde o mercado de trabalho à sustentabilidade da segurança social. Pode ser esta a solução — ou, pelo menos, ser uma contribuição significativa —, para o problema demográfico, com as suas implicações económicas e de sustentabilidade de um generoso welfare state, ou seja, do chamado modelo social europeu?
2. Para a discussão desta problemática vamos usar essencialmente o trabalho de Paul Collier, "Exodus — Immigration and Multiculturalism in 21st Century”, Allen Lane, 2013 / Êxodo — Imigração e Multiculturalismo no Século XXI. (Usamos a edição digital em formato epub, pelo que não indicamos as páginas citadas, apenas os capítulos e / ou títulos onde se inserem). O autor é um economista ligado à Universidade de Oxford, que já foi, também, quadro do Banco Mundial. O seu livro tem sido considerado um dos mais relevantes trabalhos publicados nos últimos anos, sobre um tema tão sensível politicamente e do ponto de vista humano. No capítulo 4, dedicado aos aspectos económicos da migração, este começa por abordar a já referida necessidade de mais população jovem para suportar o mercado de trabalho e os sistemas de segurança social. A análise de Paul Collier questiona os fundamentos desta argumentação intuitiva, que parece irrefutável, pelo menos à primeira vista. Importa, por isso, ver melhor quais as bases concretas em que a ideia é questionada. Um primeiro aspecto que este analisa é o do impacto nos beneficiários já existentes das prestações do Estado social. Nas sociedades de acolhimento esse impacto ocorre sobretudo na camada média-baixa e baixa da população. Aqui, Paul Collier faz notar o seguinte: “Potencialmente, o efeito mais importante é que os migrantes que chegam pobres e com famílias, competem com as populações autóctones pobres pela habitação social. Porque tendem a ser mais pobres e a ter famílias maiores que a população autóctone, têm necessidades atipicamente elevadas". Um segundo aspecto analisado é sobre a relação que se pode estabelecer entre as populações acolhidas e a sustentabilidade demográfica do Estado social. Paul Collier mostra cepticismo quanto facto de poderem ser uma solução fácil para esse problema. Um argumento usual “especialmente na Europa, é a demografia. É a noção de que precisamos da “migração porque estamos a envelhecer.‘ [...] No entanto, o simples facto de uma sociedade estar a envelhecer não é necessariamente uma razão para precisar de mais trabalhadores. […] Este sugere que a solução passa, essencialmente, por ligar a idade de reforma ao aumento da esperança média de vida, algo em que os governos europeus têm mostrado incapacidade em fazer. “Dada a inépcia dos governos na fixação da idade da reforma, por que não salvarmo-nos com alguma migração jovem?”, interroga-se. A razão, acrescenta em seguida, é que essa estratégia seria insustentável, pois, um “influxo de migrantes em idade de trabalho, apenas dá à sociedade um alívio fiscal temporário, enquanto que o aumento da esperança de vida é um processo contínuo.”
3. Ainda sobre a relação entre os migrantes, a economia e o Estado social, o problema mais delicado discutido por Paul Collier tem a ver com o impacto global do acolhimento, incluindo o reagrupamento familiar, numa perspectiva de médio e longo prazo. “O argumento demográfico pressupõe que os migrantes reduzam a relação entre dependentes e trabalhadores: sendo jovens, estão na idade da força de trabalho. Assim, equilibram a expansão do número de reformados na população autóctone. Mas os migrantes que trabalham têm também filhos e pais. [...]” Até que se ajustem ao padrão das sociedades de acolhimento, “os migrantes de sociedades de baixo rendimento tendem a ter um número desproporcionalmente elevado de filhos”. Como faz notar em seguida, se “trazem os ascendentes e seus dependentes para o país de acolhimento, isso depende, em grande parte, da política de migratória". Tendo em conta essa possibilidade — ou seja, o reagrupamento familiar —, a experiência existente mostra que “não existe uma presunção de que, ainda que temporariamente, possam reduzir a relação de dependência”. Quer dizer, "os migrantes trazem não só o capital humano gerado nas suas próprias sociedades; trazem também os códigos morais das suas próprias sociedades", com todas as implicações, positivas, negativas ou neutras que daí resultam. Um outro aspecto relevante da análise de Paul Collier incide sobre a tensão entre os interesses das empresas, especialmente das grandes empresas, e o resto da sociedade nesta matéria. “Quase todas as semanas”, diz este,” vejo cartas nos jornais assinadas por alguns CEO fulminando contra as restrições em matéria de migração.” Como este chama à atenção, frequentemente isso ocorre por interesses empresariais de curto prazo. A coberto da retórica (neo)liberal da competitividade evitam pagar salários mais elevados, ou pressionam a sua redução e / ou eliminam custos de formação. Por outras palavras, as empresas que actuam assim retiram as vantagens de uma mão-de-obra mais barata, fragilizada e sem reivindicações sindicais, ou eventualmente já formada. Paralelamente, externalizam os custos de longo prazo, de não emprego dos autóctones e / ou de acolhimento e integração dos migrantes — infra-estruturas sociais, prestações sociais, reagrupamento familiar, etc. —, para a sociedade no seu todo. É, por isso, do interesse da população autóctone “forçar as empresas que pretendem beneficiar do modelo social do país, a treinarem a sua juventude e contratarem os seus trabalhadores. As suas afirmações portentosas são apenas variantes pálidas do grandiloquente o que é bom para a General Motors é bom para o país.”
4. Que pensar de tudo isto? Serão estas ideias transponíveis para o actual fluxo de refugiados para a Europa? Estamos a lidar com uma situação essencialmente diferente? Mais do que qualquer conclusão simplista, ou ideias definitivas sobre o assunto, o livro de Paul Collier deve ser visto como um contributo relevante para (re)pensar, de forma abrangente, o impacto das migrações em massa nas sociedades de acolhimento. Quanto ao caso português, é atípico devido aos até agora escassos fluxos migratórios para o país. Muitas das ideias aqui discutidas são mais relevantes para uma análise geral a nível europeu, bem como para uma visão comparativa. Importa ainda sublinhar que o termo migrante, quando usado em sentido lato, como é feito neste artigo, abrange duas realidades diferenciadas. Uma é a dos que fogem de países devastados pela guerra, como a Síria, susceptíveis de serem apropriadamente qualificados como refugiados, quer face à Convenção das Nações Unidas de 1951 e ao seu Protocolo adicional de 1967, quer face à legislação da União Europeia e dos Estados-membros. Outra situação é a das pessoas que estão à procura de uma vida melhor e de emprego, que mais rigorosamente são migrantes económicos (imigrantes). Em qualquer política adequada é necessário separá-las, o que apresenta dificuldades práticas, sendo a mais óbvia a dos que chegam sem documentos. Por último, uma boa sociedade, uma sociedade aberta e humanista, não pode ficar indiferente à tragédia que está a ocorrer às suas portas, no Sul e Leste do Mediterrâneo e já transbordou para o seu interior. Mas a compaixão, a solidariedade e vontade de ajuda não devem obscurecer a complexidade do problema, quando se se trata de tomar decisões políticas a nível de Estado, ou da União Europeia. É necessário balancear as múltiplas de facetas da questão, que vão para além do imediatismo e do nobre impulso da entreajuda humana. Estamos a assistir ao início de um processo histórico que poderá ter muitas consequências, próximas ou diferidas no tempo. Se a vida dos refugiados está em jogo — e urge actuar —, também, num outro plano, para os já desfavorecidos nas sociedades de acolhimento, o Estado social e os modos de vida das gerações actuais futuras, os impactos podem ser grandes. Nenhumas destas dimensões deve ser subestimada.
Investigador