Bilhete para o desconhecido
Rodrigo Amado terminou 2014, ano em que lançou dois álbuns de espanto com Peter Evans e se estreou com o Wire Quartet, eleito como um dos cinco saxofonistas tenor mais relevantes do jazz actual. Agora chegam um disco gravado ao lado de Joe McPhee e a hora de partilhar o palco com Matthew Shipp.
Entre todo o material resultante de uma única jornada de estúdio registada em Dezembro de 2012, com a química musical e pessoal a encarregar-se de facilitar o trabalho do quarteto, o saxofonista português duvidou muito sobre esse tema em que diz sentir a presença de McPhee mas o músico decide nunca entrar em cena. Felizmente, Amado não se deixou agrilhoar por esse pormenor técnico. Theory of mind é uma peça que queima o ar debaixo de uma tensão devastadora, e não mereceria um esquecimento forçado pelo silêncio de McPhee. Até porque esse silêncio é sintomático da soberba escalada empreendida por Rodrigo Amado na última dezena de anos, desde que com os Lisbon Improvisation Players e as oportunidades criadas pela editora Clean Feed começou a cruzar-se regularmente com músicos internacionais de primeira linha. Por isso, muito embora não se trate de uma luta, a ausência deliberada de McPhee transforma-se num significativo aval do músico, deixando que a música se construa e resolva sem a sua intervenção. O seu silêncio soa a bênção.
Essa imagem vale também para o lugar que Rodrigo Amado tem conquistado no circuito da música improvisada, a ponto de ter sido votado pelo site El Intruso, a partir de escolhas de 46 críticos – pertencentes a publicações como Down Beat, Signal to Noise, All About Jazz ou Village Voice –, um dos cinco melhores saxofonistas tenor em actividade em 2014, atrás apenas de Ken Vandermark e Mark Turner. Theory of mind, não o querendo, diz-nos também isso, que rodeado dos melhores não precisa deles como bengalas ou suplementos artificiais. Talvez essa verdade nunca tenha sido tão evidente quanto nos dois álbuns soberbos lançados em 2014 pelo seu Motion Trio com o trompetista milagroso Peter Evans, exponenciados pela fricção constante entre as duas partes e pela inevitabilidade de o trio de Amado ter sido empurrado para fora de pé ao dar resposta a um músico totalmente indomável, mas a capacidade de ombrear com gente do calibre de McPhee, Kent Kessler e Chris Corsano não escapa também a quem escutar This Is Our Language.
A diferença claríssima em relação ao encontro com Peter Evans é que, para além de Rodrigo Amado não surgir aqui com o seu trio habitual, o ambiente em que a música nasce não é de confrontação, antes sublinhando a sua filiação numa linguagem de que Joe McPhee é uma referência obrigatória. “No fundo, estamos todos a tocar a mesma música”, comenta Amado ao Ípsilon. “Ainda por cima, eu e o Joe, em termos de alma musical, temos muitos pontos de contacto. É uma das minhas grandes influências. Falando a mesma linguagem, foi uma questão de procurarmos uma intensidade dentro dessa ligação que já existe.”
Logo a abrir This Is Our Language, título que vinca essa ideia de que Amado, McPhee, Kessler e Corsano (mas sobretudo os três primeiros) pertencem a uma mesma família de improvisadores, The primal word funciona quase como um manifesto disso mesmo, ao dispensar a bateria e seguir uma estrutura que desenha com rigor esta noção de que os dois saxofonistas vêm de um lugar semelhante. Depois de ambos emaranharem melodias num primeiro gesto de reconhecimento e aproximação, Amado segue em duo com Kessler até que McPhee se atravessa com delicadeza no seu caminho e prossegue também em duo com Kessler, como se os dois homens dos sopros pudessem, afinal, ser um só. “Não há sobreposição alguma e não estamos a olhar um para o outro”, comenta Amado. “Eu faço uma pausa, ele dá uma nota e eu calo-me. E aquilo acontece com uma leveza incrível, parece que estava escrito ou que havia contacto visual.” Mas não, aquilo que havia era apenas uma apurada sintonia.
A maior familiaridade é depois atacada com a calculada intervenção de Corsano. Rodrigo Amado chama-lhe “o elemento ácido” escolhido para desestabilizar uma linguagem que corria o risco de assentar com demasiada segurança. Embora Corsano faça parte dos concertos regulares de McPhee, a aridez surpreendente da sua bateria é originária do rock com ambição mais exploratória – casos de Thurston Moore e Kim Gordon, Jim O’Rourke, Björk, Matt Valentine ou Six Organs of Admittance – e, por isso, menos viciada em automatismos que corriam o risco de roubar à improvisação o inesperado que lhe é indispensável. Corsano, por assim dizer, é a pequena pedra que Amado coloca conscientemente no trajecto para criar solavancos numa estrada segura.
Perto do descalabro
Em permanência, seja com os ensaios cada vez mais intensos e esgotantes do Motion, seja através dos convites para projectos especiais com Peter Evans ou Matthew Shipp, a música de Rodrigo Amado obedece sempre a um desejo de se acercar do desconhecido. Com o Motion Trio (onde tem a companhia de Gabriel Ferrandini na bateria e de Miguel Mira no violoncelo), o saxofonista sabe que a insistência nessa mesma formação conduz, bastas vezes, “a pontos de saturação e de ruptura”. Mas é essa proximidade do descalabro, da recusa de um conforto, que permite igualmente vislumbrar o salto para um patamar adiante. “Acontece que esse patamar seguinte é cada vez mais difícil”, confessa. “Tem de se ensaiar horas e horas para conseguir saltos que podem ser pequenos mas que são super importantes e essenciais. É a única maneira de se fazer, ainda que crie muito desgaste no grupo e nas pessoas. Só que depois as coisas iluminam-se e, de repente, chegamos a uma música que nunca pensámos que seríamos capazes de tocar. Já aprendemos que vale a pena. E é preciso estarmos sempre a falar nisso porque há muitos factores que se metem pelo meio e que distraem.”
É igualmente por essa rotina demoníaca que passa a preparação para um concerto como aquele que o Motion Trio apresentará com Matthew Shipp no Teatro Maria Matos, em Lisboa, no próximo dia 1 de Outubro. A colaboração com Shipp, um dos mais fascinantes pianistas em actividade (espécie de reencarnação de um Thelonious Monk contaminado pela aspereza do hip-hop e pela fractal música contemporânea), é uma vontade antiga de Rodrigo Amado em que antevê outra jogada de risco. “Em termos de personalidade, penso que ele tem uma certeza dureza – foi pugilista também e vejo isso nele – e é uma pessoa muito fechada. Toca normalmente com os mesmos colaboradores, não sai muito da sua zona de conforto. Mas acho que vai correr bem. Tenho uma admiração enorme por todo o trabalho dele e é dos pianistas mais incríveis a tocar na nossa área. Estou com grandes expectativas em relação àquilo que vai fazer à música do trio. Imagino que será algo fortíssimo.”
Uma eventual gravação a quatro ficará à espera de uma ocasião posterior, depois de feito o devido balanço desta primeira experiência em palco com Shipp. Até porque não faltam a Rodrigo Amado álbuns já gravados e à espera do momento certo para a edição, depois de sujeitos a um rigoroso e longo processo de audições. “O nosso grau de exigência é cada vez maior, porque queremos sempre ir mais longe.” Por agora, acredita que sobreviverão a essa severa triagem o segundo álbum do Wire Quartet, um álbum ao vivo do Motion Trio com Peter Evans gravado no mítico Café Oto (em Londres), resultado da incendiária digressão que realizaram no início do ano, e um duo partilhado com Chris Corsano. Tudo o resto são incógnitas e tentativas de, no meio das notas, descobrir paisagens musicais em que nunca antes tivesse reparado ou que não estivesse ainda preparado para ver.