Auto-retrato

Mais alto que gordo, barbudo, cabeçudo e grisalho. Olhos azuis maus de vista (miopia dum lado e astigmatismo do outro) e péssimo de dentes (daí sorrir de boca fechada para as fotos)

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beludise/Pixabay

Leio o camarada Bocage e apercebo-me que nunca me apresentei. Escrevo-vos 3000 caracteres por semana há 55 semanas e (havendo para aí uns 1000 que me lêem recorrentemente)... não é próprio, diria a minha avó Belandina, por tanto, cá vai: Tiago Manuel, filho da Helena e do João, 39 anos, irmão mais velho duma irmã mais nova (mais uns apanhados na vida aqui e ali), casado e pai de filha. Mais alto que gordo, barbudo, cabeçudo e grisalho. Olhos azuis maus de vista (miopia dum lado e astigmatismo do outro) e péssimo de dentes (daí sorrir de boca fechada para as fotos). Patudo e barrigudo, desleixado no vestir mas amigo do banho, neto extremoso, filho mais-ou-menos, marido sério, pai severo (só porque nunca lhe minto), heterossexual.

Filho da burguesia lisboeta e neto do campesinato beirão, ex-católico, benfiquista, dador (O-Rh negativo), ciclista (sem carta mas com "o passe"), contribuinte cumpridor e disso orgulhoso, filho de Exu, sócio da Amnistia Internacional (com a quota em atraso), esquerdista impenitente.

Mais gentil do que bem-educado, lúbrico como um coelho com tempo, língua solta com vocabulário de carroceiro, com queda para lavar as mãos dezenas de vezes ao dia, mau poeta, pintor secreto, fóbico de avestruzes, mau para fazer novos amigos mas feroz na guarda dos velhos, fumador de tabaco de enrolar, formador certificado, antropólogo com a tese para entregar há demasiado tempo, sempre com frio no rabo, insone e noctívago.

Cinéfilo guloso, leitor voraz, amador da banda-desenhada (continental e anglo-saxónica, o dia dos japoneses estará para vir), dançarino desenvergonhado, amigo do copo (só nacionais e estrangeiros, diria o meu sogro) e da droga sem química (a cannabis ilegal quando o whisky e o xanax não, é piada?!), melómano catatónico e com mau-feitio (elogiem-me musiquinha da treta e é ver quão rápido o verniz estala), amigo dos bichinhos mas omnívoro e aficionado (a ‘intelligentsia’ lisboeta que me perdoe).

Amigo do marçano, da padeira, do barbeiro e do senhor da drogaria (apesar do cartão mini-preço), dado a escrever nas paredes, demasiado branco para a praia mas com mais tripa para andar de barco do que de carro, parcial do gindungo e do caril, assinante do “Charlie Hebdo”, peregrino do mur des fédérés, avesso ao teatro participativo, com tendência para limpar a sala em privado e deitar a língua de fora em público, incapaz de não me rir de quem se leva a sério e de escrever sem me despir nem que seja só um bocadinho.

Mais da carne que do peixe, mais dos gatos que dos cães, mais dos miúdos que dos graúdos, mais da poesia que da prosa (fora o Borges), mais do vinagre que do azeite, mais do tinto que do branco, mais da manifestação que do abaixo-assinado online, isento de Facebook, objector do Ikea, intolerante à “música infantil” (da Ana Faria à Xana Toc Toc, é tudo para o lume), despassarado com nomes (lembro-me sempre das caras!) e aniversários e comemorações e dias disto e daquilo mas invulgarmente pontual (para português), ensimesmado em situações “sociais” mas verborreico quando com um grão na asa, adicto do humor (fanático dos Monty Python, do George Carlin e do Bill Hicks), agnóstico.

Mais propenso à ternura que ao furor, sem dó para o topete dos pequenos, filho da madrugada irrequieto no sossego, observador do género humano (especialmente mulheres bonitas), pessimista com esperança, comité-central de mim mesmo, amigo da desilusão (antes a desilusão que a ilusão!), incapaz da mudez face à infâmia, danado para a palhaçada, às vezes parece que estou à espera dalguma coisa, espírito-de-contradição, de quem gosto despeço-me sempre com um “até já”.

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