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A culpa em rede

Purity é uma crítica mordaz a esta sociedade que apela à transparência absoluta e vive refém de uma rede tão perversa quanto os regimes totalitários. Sem ser, ao contrário do que se especulava, mais do mesmo Jonathan Franzen

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O livro segue uma trama intrincada, numa teia de comprometimentos em que a rede cibernética surge como uma espécie de novo totalitarismo que encontra paralelo no regime da Alemanha de Leste ANDY RYAN/CORBIS OUTLINE

Rectidão moral, sobranceria moral, dilema moral. E ainda risco, desprezo, agressão, absolutismo, indignação, vitória, bênção... A noção de moral, em múltiplas conjugações, aparece profundamente esmiuçada no mais recente romance do norte-americano Jonathan Franzen, que em Purity alia o conservadorismo formal ao que ele reclama ser um dos papéis dos escritores em democracia: ligar o leitor à realidade sem abdicar do princípio do prazer.

Passaram cinco anos desde a publicação de Liberdade, livro que reconstitui as relações complexas dos vários elementos de uma família norte-americana da actualidade ao longo de vários anos. Ali, o autor natural do Illinois, onde nasceu em 1959, opta pela simplicidade formal, tal como fizera em Correcções, o romance de 2001 que lhe deu notoriedade mundial e o fez ser apontado como um dos mais representativos observadores da sociedade norte-americana, capaz de denunciar as suas fragilidades a partir de biografias pessoais. As suas personagens — masculinas e femininas — são paradigmáticas de um tempo de grande ambiguidade. Purity segue essa tradição, mas traz um Franzen capaz de correr mais riscos, num enredo cheio de suspense, com cinco protagonistas — dois dos quais mulheres — e um relato sempre na primeira pessoa. São eles, numa intimidade inconfessável que a literatura de Franzen é capaz de expor sem falsos pudores, que lhe permitem construir um romance sobre a aspiração à pureza e a culpa que quase sempre anda associada à frustração desse sentimento. 

“A culpa deve ser a mais monstruosa das qualidades humanas”, pensa Tom Aberant, jornalista responsável por um projecto on-line de jornalismo de investigação na cidade de Denver que Franzen coloca em contraponto com Andreas Wolf, rival de Julian Assange numa organização que compete com a WikiLeaks. Wolf cresceu na Alemanha de Leste, antes da queda do Muro; é o filho-prodígio de um casal comprometido com o regime comunista, convive com o desejo da perfeição e uma tentação de vertigem que o leva a cometer um crime que irá unir todas as personagens do livro, sobretudo Purity, uma rapariga de 20 e poucos anos, filha de uma hippie que quer ficar invisível a uma sociedade que não respeita.  

“As pessoas que expõem sujidades fazem-no porque estão desejosas de limpeza”, argumenta alguém que quer convencer Purity a entrar no Projecto Luz Solar, de Andreas Wolf. Purity é jovem, mas, ao contrário de todas as personagens principais deste romance quando eram novas, tem consciência da sua imperfeição. Por isso rejeita o nome que a mãe escolheu para ela, preferindo o diminutivo Pip. É como Pip Tylor que ela se apresenta tanto a Andreas como a Tom — dois homens unidos pela culpa e separados por quase tudo o resto —, e aos dois confessa o seu grande objectivo: descobrir o pai e livrar-se de uma dívida. 

O livro segue uma trama intrincada, numa teia de comprometimentos em que a rede cibernética surge como uma espécie de novo totalitarismo que encontra paralelo no regime da Alemanha de Leste, representado pela Stasi — a polícia política que tudo vigiava, mantendo a sociedade numa coesão baseada numa ideia de pureza que queria ser o contraponto ao Ocidente corrompido. “A velha República tinha-se indubitavelmente esmerado em vigilância e paradas, mas a essência do seu totalitarismo tinha sido mais comezinha e subtil. Uma pessoa podia colaborar com o sistema ou opor-se a ele, mas a única coisa que jamais podia fazer, quer gozasse de uma vida segura e agradável ou estivesse fechada numa prisão, era não ter qualquer relação com ele. A resposta a todas as perguntas, grandes ou pequenas, era o socialismo. Substituindo socialismo por redes tinha-se a Internet. As suas plataformas em competição estavam unidas na ambição de definir cada termo da nossa existência.” O dois mundos de Wolf unem-se nessa vigilância, jogando com aspirações pessoais, traição, pactos eternos, medo. Com cada personagem a ser uma peça decisiva num jogo onde parece haver apenas um inocente, mas a que custo?

Recorrendo a boa dose de ironia e sarcasmo, Franzen constrói em Purity uma sátira do mundo actual não isenta de polémica, algo a que o escritor já habituou os seus leitores, que encontram ainda aqui uma crítica mordaz ao mundo literário, com nomes de autores reconhecidos — incluindo o do próprio Franzen — a ajudarem a compor um quadro realista onde muitas vezes o leitor vê reflectido os seu próprio rosto.

Em conclusão, Purity traz um Franzen criativo, renovado, que sem romper com o que já fez nos livros anteriores consegue trazer emoção e contrariar o que alguns anteciparam: que seria mais do mesmo Jonathan Franzen. Não é só isso, afinal.

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