Enzima do fígado humano vista pela primeira vez a 3D por cientistas portuguesas

O fígado é determinante para a eficácia de muitos medicamentos. A estrutura de uma proteína que aí existe, central precisamente na transformação dos fármacos, foi agora revelada – átomo a átomo.

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Modelo tridimensional da enzima AOX Universidade Nova de Lisboa
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A enzima AOX cristalizada Universidade Nova de Lisboa
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A enzima AOX cristalizada Universidade Nova de Lisboa
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As investigadoras com o difractómetro de raios X atrás (da esquerda para a direita): Teresa Santos Silva, Catarina Coelho e Maria João Romão Universidade Nova de Lisboa

Esta proteína de acção catalisadora intervém num grande número de reacções de metabolismo de medicamentos no fígado humano, mas alguns desses processos não são ainda bem conhecidos e previsíveis. O fracasso de uma grande parte dos ensaios clínicos feitos pelas empresas farmacêuticas deve-se à dificuldade de saber se determinada molécula será ou não metabolizada pela AOX, isto porque até agora se desconhecia a sua estrutura.

Para além deste obstáculo, há ainda o problema dos modelos animais adequados. O número de enzimas AOX difere consoante a espécie: os roedores têm quatro formas diferentes desta enzima, enquanto os humanos apresentam apenas uma. Assim, torna-se difícil encontrar um modelo adequado para estudar e prever o metabolismo da AOX no fígado humano. A equipa da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (UNL) coordenada por Maria João Romão, que trabalha a enzima AOX há oito anos, centrou os seus primeiros estudos na enzima dos ratos, e saltou para a enzima humana neste último estudo.

Cristais por correio
Para determinar a estrutura 3D da AOX humana e poder visualizar os seus mais de 1330 aminoácidos, as investigadoras tiveram de cristalizar a enzima e submete-la a raios X. “Devido ao seu grande tamanho, usámos a cristalografia de raios X para determinar a estrutura 3D da enzima e poder ‘ver’ o complicado arranjo dos aminoácidos entre si”, explica Catarina Coelho, da equipa de Maria João Romão, que inclui ainda Teresa Santos Silva. “Apenas quando conseguimos localizar as posições da maioria dos mais de dez mil átomos é que pudemos correlacionar a estrutura com a função [da proteína] e tirar conclusões acerca dos mecanismos enzimáticos e de inibição”, acrescenta Catarina Coelho, citada num comunicado da instituição.

A bactéria Escherichia coli foi o organismo escolhido para produzir a enzima em quantidade suficiente para ser cristalizada. A equipa colaborou com cientistas da Universidade de Potsdam, na Alemanha, devido à especificidade da Escherichia coli – porque algumas moléculas “ajudantes” (cofactores) necessárias para a activação da enzima não são facilmente sintetizadas pela bactéria.

“Já tinha sido desenvolvida em Inglaterra uma estirpe de Escherichia coli específica para a produção de proteínas com os cofactores”, explica ao PÚBLICO Maria João Romão. “Os nossos colaboradores na Alemanha optimizaram a expressão da AOX neste sistema, de início para a enzima de rato e posteriormente para a forma humana. Este trabalho já vinha a ser desenvolvido há vários anos pelo grupo inglês, mas foi agora optimizado.”

Todo este trabalho de produção e purificação da proteína, garante Maria João Romão, poderia ter sido feito em Portugal. “Mas a distribuição de tarefas com outros grupos permitiu-nos ser mais rápidos, eficazes e competitivos, quer a nível nacional quer a nível mundial, tanto para a obtenção de resultados como de financiamento.”

Depois sintetizada a proteína, passou-se às cristalizações. A equipa produziu mais de 800 cristais, que depois foram submetidos a intensos raios X, em máquinas chamadas “sincrotrões”, para se efectuarem as medições e determinar-se a estrutura da proteína. O Laboratório Europeu de Radiações Sincrotrão (em França), o Diamond Light Source (no Reino Unido) e o Swiss Light Source (na Suíça) foram os escolhidos para este trabalho. “Precisámos de mais de 40 viagens até ao sincrotrão e de muitas noites em claro, até que obtivéssemos dados de boa qualidade dos cristais AOX”, contam, citadas no comunicado, Catarina Coelho e Teresa Santos Silva.

Para levarem os cristais até aos laboratórios sincrotrão, a equipa congelou-os em azoto líquido e enviou-os por correio urgente. “Com as restrições actuais das companhias aéreas após o 11 de Setembro, deixou de ser possível transportar os cristais connosco no avião. Podem ser enviados no porão, mas já aconteceu ficarem retidos sem aviso e não chegarem a tempo e, nesse caso, toda a experiência ficou comprometida”, diz Maria João Romão.

A cada pessoa a sua reacção
Agora que foi determinada a estrutura 3D da enzima, a compreensão das suas complexidades é um objectivo próximo. Uma delas é variabilidade da enzima em humanos, que foi primeiramente identificada em 1999. Estas variações chamam-se polimorfismos de nucleótidos simples e são pequeninas alterações normais nas sequências de ADN, neste caso da AOX. Mas para além disto, pensa-se que factores como o género, a idade, a utilização de drogas ou o fumo do cigarro possam ser responsáveis por variações da enzima. E agora com o conhecimento da sua estrutura, espera-se uma melhor compreensão do seu modus operandi.

“Estas variações levam à expressão de diferentes formas da enzima para cada indivíduo e, como consequência, uma resposta diferente para o mesmo fármaco”, explica Maria João Romão. “Isto significa que estes indivíduos possuem uma capacidade de metabolismo diferente da do resto da população, reflectindo-se numa metabolização muito rápida, muito lenta ou inexistente de um determinado agente terapêutico.”

A equipa identificou ainda um novo local de ligação na enzima AOX importante para o metabolismo de fármacos que – por não ter sido conhecido até agora – é a causa de insucessos de vários ensaios clínicos. Para que alguns fármacos actuem, o metabolismo é necessário, mas há outros medicamentos que, sendo metabolizados, a nova molécula formada pode tornar-se prejudicial para o organismo. Estes fármacos actuam inibindo proteínas em locais específicos (tal como a AOX), para que a metabolização não ocorra.

“Sabe-se agora que a AOX tem um papel importante no metabolismo. Muitos fármacos são feitos com o objectivo de não serem metabolizados, mas para isso têm uma configuração química que na realidade [sabe-se agora] os torna mais propícios a serem metabolizados pela AOX”, diz Maria João Romão. Alguns fármacos derivados do composto fenotiazina (antipsicóticos, anti-histamínicos, antibióticos e medicamentos para o cancro) são inibidores da AOX, mas não se sabia ainda muito bem como esta inibição ocorria.

“Com a administração destes compostos [derivados da fenotiazina], o normal funcionamento da enzima AOX é alterado e o metabolismo de outros fármacos será também inibido, o que terá consequências para os tratamentos em questão”, sublinha Maria João Romão.

Os resultados do estudo vêm assim permitir o desenvolvimento de novos fármacos, com vista a diminuir as probabilidades de interacções medicamentosas, impedindo ou accionando a metabolização pela AOX. Conhecendo a estrutura da AOX, as farmacêuticas poderão usar métodos computacionais – ou in silico – de previsão e avaliação do metabolismo da enzima. “Com esta informação, a indústria farmacêutica poderá procurar, por exemplo, desenvolver novos compostos que não se liguem à AOX mas que tenham o mesmo efeito terapêutico.”

Texto editado por Teresa Firmino

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