Joel Gion: o último homem em São Francisco

Joel Gion era o homem da pandeireta nos Brian Jonestown Massacre: só isso, tudo isso. Começou a compor já nos quarentas e vem apresentar o seu primeiro álbum no Reverence Festival Valada. Traz com ele o espírito da sua antiga banda.

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Joel é, acima de tudo um romântico. Um apaixonado pela liberdade niilista da vida rock’n’roll, pelas suas mitologias, pela sua quase infantil capacidade de nos entregar ao sonho mesmo quando o cinismo da idade adulta faz o seu caminho na alma LILLY CREIGHTMORE

Joel Gion tem 44 anos e as canções que tocará são das primeiras que saíram da sua cabeça e ganharam caminho para um estúdio, o que parecerá estranho. A música tem sido aquilo que o define, a única coisa a que se dedicou consequentemente na idade adulta. Tendo isto em perspectiva, é no mínimo pouco convencional que só nos últimos anos tenha decidido pegar numa guitarra e alinhavar acordes e melodias de voz. Mas o percurso de Joel Gion é tudo menos convencional. Foi isso, aliás, que nos levou a pegar no telefone e a ligar para São Francisco, a sua cidade, aquela onde já não tem amigos. “Foram todos obrigados a sair devido ao acelerado processo de gentrificação." Ele ficou e ali ficará, garante: “Até que arrastem o meu cadáver daqui para fora."

Ainda que, “devido à chegada do dinheiro da tecnologia, do Twitter, da Apple, de todas essas empresas que estão aqui agora, todos os falhados graciosos que faziam da cidade um sítio tão interessante para viver tenham sido empurrados para fora dela”; ainda que Thee Oh Sees, Sonny & The Sunsets, Ty Segall ou White Fence, bandas que há cinco anos estavam a protagonizar um “renascimento” e a tornar “tudo excitante novamente”, estejam entre os que saíram, e ainda que Joel diga, entre risos, “eu sou último que resiste”, a verdade é que Joel se apaixonou há muita pela cidade e não consegue abandoná-la. “Ainda consegue ser muito romântica. Na zona onde vivo foram filmadas muitas cenas dos filmes de Alfred Hichcock, como Vertigo ou Os Pássaros. A arquitectura é a mesma desde há décadas. Ando pelas ruas e vejo os fantasmas dos beatnicks pendurados nas janelas."

Joel é, acima de tudo um romântico. Um apaixonado pela liberdade niilista da vida rock’n’roll, pelas suas mitologias, pela sua quase infantil capacidade de nos entregar ao sonho mesmo quando o cinismo da idade adulta faz o seu caminho na alma. Não por acaso, identifica a origem do seu fascínio pela música num filme de animação. “O Yellow Submarine foi a minha porta de entrada, aos cinco anos, em toda esta viagem que continuo a fazer. Apaixonei-me por música através desse filme." Ainda continua apaixonado. O título do seu álbum não engana. Apple Bonkers é uma referência ao filme dos Beatles, aos “mauzões” que eliminavam os habitantes da Pepperland bombardeando-os com maçãs gigantescas – e uma crítica ao que empresas como a Apple estão, já disse Joel, a fazer a São Francisco.

Toda a música
Nos anos 1990 e no início da década seguinte, encontrávamos Joel Gion, patilhas fartas e cabelo em rebuliço, em destaque na frente dos palcos. Não era vocalista e não era o guitarrista-estrela. Tocava pandeireta e maracas. Só isso. Era uma mistura de Bez, o acessório indispensável aos Happy Mondays, e de Jack Ashford, o homem que, na Motown, elevou tocar pandeireta a uma arte maior. Era só isso, mas isso fazia todo o sentido na sua banda, os Brian Jonestown Massacre liderados pelo irascível, genial, paranóico, sonhador inveterado e criador incontinente chamado Anton Newcombe. “A culpa [de tocar pandeireta] é dele”, diz. Estávamos 1994, os Brian Jonestown Massacre iam tocar numa festa de aniversário em casa de Joel, e Newcombe perguntou-lhe se, já que vivia ali, não queriria subia a palco e “chocalhar uma pandeireta”. Assim o fez. E não mais saiu dos Brian Jonestown Massacre. “Também tocava maracas e deitava-lhes fogo, ao estilo de Jimi Hendrix”, conta. “Para mim era também uma espécie de arte performativa. Recordo que estávamos na altura do grunge e de todas aquelas coisas horríveis de Seattle. As pessoas não conseguiam perceber o que estava eu a fazer em palco, mas fazia todo o sentido naquela banda." Fazia. Porque os Brian Jonestown Massacre eram tão maravilhosamente tresloucados quando talentosos e ambiciosos.

“Vamos tomar conta do mundo e vou mostrar-te como no teu filme”, dizia Anton Newcombe em 1994 a Ondi Timoner, a realizadora de Dig! (2004), provavelmente o documentário definitivo sobre o romântico, alucinado, glorioso e decadente mundo do rock’n’roll. Nele seguíamos em paralelo o percurso de duas bandas, os referidos Brian Jonestown Massacre e os Dandy Warhols, inicialmente bandas-irmãs, no final inimigas figadais, os primeiros atravessando um processo de autodestruição paredes-meias com uma criatividade entusiasta, os segundos, mais atinados, a crescerem até ao estrelato conferido por Bohemian like you.

Joel é ambivalente em relação a Dig!. Se, por um lado, foi responsável por fazer chegar os Brian Jonestown Massacre muito além do culto que os seguia, álbum após álbum, concerto brilhante após concerto falhado, desde meados da década de 1990, por outro lado, compreende que Anton Newcombe, o líder, ou Matt Hollywood, o guitarrista, também vocalista e co-compositor, com penteado de Brian Wilson decorado com óculos à John Lennon, se tenham sentido ultrajados pela forma como foram retratados. “Ela [Ondi Timoner] quis contar uma história e, para tal, compartimentou cada um de nós numa determinada personagem. O Anton era o líder louco, o Matt Hollywood era o irmão mais novo e racional, e eu era o maluco. Mas as pessoas agem de forma diferente todos os dias, de hora a hora, e havia alturas em que o Anton é que era o gajo bizarro e eu é que era o idiota. Fizemos tudo o que se vê nas imagens, mas a forma como foi montado não será representativo do que éramos." Onze anos após a edição do filme que lhes amplificou decisivamente a lenda, sente-se um certo travo a justiça poética. Porque os Brian Jonestown Massacre, que nunca chegaram sequer perto do estrelato atingido pelos Dandy Warhols, estão presentes como nunca no cenário musical (e os Warhols esquecidos).

A banda de Thank God For Mental Illness ou Bring it Back! exibia uma coolness retro nos antípodas do ambiente geral em tempos de grunge e fazia da sua música um pastiche pós-moderno do que a antecedera: orientalismos alimentados a cítara, guitarras de 12 cordas à Byrds, negrume psicadélico, nebulosas shoegaze, pop Beatlesco, rock’n’roll saído de uma garagem da década de 1960.

Olhamos para eles em Dig! e vemos a nossa actualidade em que todos os tempos se recriam e em que a ideia de psicadelismo rock’n’roll voltou a ser abraçada por toda uma nova geração de bandas. Os Brian Jonestown Massacre não só viram sair das suas fileiras músicos que fundaram depois os Black Rebel Motorcycle Club ou os Beachwood Sparks, também assomam como pioneiros do passado reencontrado dos nossos dias. São banda de culto para uma imensa minoria. São portanto um grupo que cai na perfeição no cartaz do Reverence Festival Valada, não em nome próprio, é certo, mas nele representados em espírito através de Joel Gion – enquanto Anton Newcombe continua a manter a banda viva desde Berlim, para onde se mudou entretanto. Isto porque o festival, que teve primeira edição no ano passado, agrupa no seu cartaz toda uma série de nomes que estão a fazer ou que fizeram o seu caminho subterraneamente, deixando um legado que lhes dá, hoje o estatuto de clássicos, como os Amon Düul, nome indispensável krautrock da década de 1970, os nova-iorquinos Jon Spencer Blues Explosion, mestres desalinhados do rock’n’roll dos anos 1990, ou os Sleep, nome de destaque do stoner-rock.

Em Dig!, o jovem Joel Gion é uma personagem “clownesca” que atravessa o filme com um sorriso malandro e tiradas bem-humoradas enquanto o caos em que participa se desenrola à sua volta. Não sorrirá quando, no final, tudo se desmorona e cada membro dos Brian Jonestown Massacre segue o seu caminho de regresso a casa. “Perdi quatro anos da minha vida. Que absoluta perda de tempo”, desabafa. Mas não desiste. Diz que continuará a tocar, que reunirá gente interessante com quem trocar ideias.

Em 2011, editou o seu primeiro registo a solo, o EP Extended Play. Três anos depois, chegou Apple Bonkers. Foi gravado com antigos membros dos Brian Jonestown Massacre como Collin Hegna, Rob Campanella, Jeffrey Davies ou Miranda Lee Richards (que também actuará em Valada na tarde de sábado) e, nele, Joel Gion pretendeu “abarcar todos os tipos de música” com que cresceu – “aqueles que me fizeram querer fazer música”, ou seja, o psicadelismo pop da década de 1960, o shoegaze inglês dos anos 1980 e 1990, o rock’n’roll garageiro preparado para pôr um salão de baile em dança alvoroçada.

É o disco de um músico libertado. “Envolvi-me muito novo nos Brian Jonestown Massacre, que tinham dois compositores muito bons. Perante Anton Newcombe e Matt Hollywood, era intimidante tentar sequer compor. Por isso, demorou-me até aos quarentas para o começar a fazer, o que é muito estranho. Só agora estou a descobrir a minha voz e a alcançar os recursos criativos que deveria ter começado a explorar nos meus vintes." Até está a alargar horizontes. “Tenho andado a ouvir muita música brasileira e música soul, principalmente do início da década de 1970. As minhas canções terão sempre os elementos psicadélicos, mas estou a acrescentar-lhes novos ingredientes."

Joel Gion começou tarde a compor canções, mas é bom que não pare. O último homem em São Francisco não pode abandonar a cidade.

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