“Um statement não é suficiente para mudar toda a sociedade”

Conchita Wurst, a drag queen vencedora do Festival Eurovisão da Canção 2014, esteve em Lisboa a lançar o seu álbum, a sua biografia e a actuar.Lembrou a infância da avó passada em Portugal, avisou que ainda há um longo caminho a percorrer e revelou um sonho: ter um Grammy.

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Conchita Wurst: "Criei esta personagem para me divertir" Isabel Coutinho, Vera Moutinho

“Quando a vi, fiquei petrificado a olhar para ela, só queria abraçá-la”, conta Marco Tristão, 20 anos, estudante, emocionadíssimo à porta da discoteca Trumps, em Lisboa, sábado passado de madrugada, depois de ter acabado de concretizar o sonho de conhecer a vencedora do Festival Eurovisão da Canção 2014: a austríaca Conchita Wurst.

Se não fosse o amigo que o acompanhou ajudá-lo durante a conversa, não teria conseguido articular palavras. “Só queria dizer-lhe que a admiro por ser defensora dos direitos dos gays. Era muito importante que ela soubesse que tem pelo menos um superfã, apesar de eu saber que ela tem muitos. Ela disse-me que não é a Madonna, mas para mim a Conchita Wurst é a Madonna. É mais do que a Madonna, é mais do que todas...”, diz Marco Tristão, que mais tarde assistiu ao concerto que a cantora deu no Gossip, em Lisboa, e no domingo esteve na plateia da final do programa da SIC Ídolos, onde Conchita actuou.

Não é o primeiro a dizê-lo. Também o costureiro Jean-Paul Gaultier, no prefácio que fez ao livro Being Conchita – We Are Unstoppable, que já está disponível em alemão, inglês, francês, italiano e em Novembro estará à venda nas livrarias portuguesas, numa edição da Bertrand, escreve: “Como Madonna que é um verdadeiro ‘macho’ num corpo de mulher, Conchita é uma wonder human num corpo de homem.”

Gaultier, para quem a drag queen já desfilou, defende que a vencedora da Eurovisão 2014 derrubou fronteiras entre o masculino e o feminino como ninguém até aqui o havia feito e conseguiu – vinda de um universo underground e avant-garde – tornar-se um “ícone de moda que vai ficar para sempre”.

A drag queen Conchita Wurst nasceu há 26 anos em Gmunden, na Áustria, como Tom Neuwirth. Cresceu no campo, os pais são donos de uma pousada e de um restaurante e a avó sabe falar português, porque viveu parte da sua infância em Portugal (era uma holiday child e aprendeu a falar português num Verão). Na adolescência, Tom sofreu bullying por os colegas verem nele um rapaz diferente, mas cedo assumiu publicamente ser homossexual. Tinha 17 anos, aconteceu durante uma entrevista em que lhe perguntaram se era gay: decidiu ser sincero mesmo antes de ter contado aos pais (só o seu irmão sabia).

Confeitaria Nacional

No livro Being Conchita – We Are Unstoppable conta que essa sua avó, que passou grande parte da infância em Portugal, onde tinha uma vida complemente diferente da que levava na Áustria, foi muito importante com o seu apoio nessa ocasião em que fez o seu coming out. Segundo conta no livro, o pai adoptivo da sua avó “tinha uma fábrica de chocolate”, que fazia pensar em Charlie e a Fábrica de Chocolate sempre que a avó a mencionava.

Mas no sábado à noite, sentada numa das caves da discoteca Trumps, a dar entrevistas de cerca de 20 minutos com algumas regras impostas aos jornalistas previamente (“O tratamento a utilizar será sempre Miss Conchita, e sempre no feminino, estando completamente fora dos limites convencionados tratamento diferente, bem como qualquer referência ou pergunta sobre o seu passado como Tom”), Conchita Wurst desfaz o mistério: a “tal fábrica de chocolates” mencionada no livro era a Confeitaria Nacional.

“Foi aí que a minha avó cresceu”, conta ao PÚBLICO. “Sempre me encantou ouvi-la contar histórias de Portugal, de como era a vida na sua infância e de como os tempos mudaram. Naquela época, as meninas não podiam ir para a praia depois das quatro da tarde, pois era a essa hora a que os trabalhadores saíam da fábrica e tinham tempo livre (e não ficava bem). Claro que nada disto era possível hoje e ainda bem. Mas para a minha avó, criança, viver naquela família, de classe alta, era quase um conto de fadas.”

Conchita tinha chegado a Lisboa naquele sábado, por isso ainda não tinha tido tempo de ir conhecer a Confeitaria Nacional. Mas a avó, que vive agora na Áustria, quando soube que ela vinha visitar o país da sua infância, entusiasmou-se e já queria fazer uma série de telefonemas antes de Conchita lhe dizer que possivelmente não ia ter tempo livre e o melhor era não incomodar as pessoas.

A influência do mar

“Há ainda algo de muito fascinante na minha avó, de querer ultrapassar os limites, fá-lo ainda hoje e é por isso um dos meus grandes ídolos”, conta Conchita e lembra que a avó sempre lhe disse que o mar traz sempre qualquer coisa nova e com ele aprendemos que não é por uma coisa ser diferente que é má.

“Acredito que as cidades e os países que têm um porto e o mar, à porta de casa, influenciam de forma maravilhosa as pessoas. Durante várias épocas, pessoas de diferentes partes do mundo encontraram-se nestes portos, e para a minha avó, naquela idade, era uma coisa completamente nova. Os austríacos tendem a ser muito conservadores, e naqueles dias, depois da Segunda Guerra Mundial, era uma situação muito séria, quando se tratava de sermos nós mesmos ou de termos a nossa própria maneira de pensar. A minha avó teve essa oportunidade de passar a infância em Lisboa e acredito que é por isso que sempre foi uma mente mais aberta e sempre teve mais coragem do que os outros. Muitas pessoas com a idade dela nunca fariam algumas coisas que a minha avó faz. É muito moderna, tem Facebook, envia emails, mensagens de texto e continua interessada em ir cada vez mais longe e aprender coisas novas. Abraça tudo o que faço, adora ser minha avó... [brinca Conchita apontando para si].”

Conchita, lançado pela Sony Music e já nas lojas portuguesas, o seu primeiro disco a solo, é como se fosse a "tracklist” da sua vida. “Digo isto porque há certamente uma canção para cada situação. Muitas vezes refiro-me à minha vida como se fosse um musical, porque preciso de música constantemente. Gostava que as pessoas vissem este álbum da mesma maneira que eu o vejo. Tem músicas para momentos em que nos apetecer dançar, bem como para ouvirmos quando nos apetecer chorar – há aqui cantigas com que podemos chorar lindamente [risos], era assim que queria que o meu primeiro álbum fosse.”

No seu livro, que está escrito na primeira pessoa (tal como foi contado a Daniel Oliver Bachmann que o escreveu), todos os capítulos têm uma epígrafe que é sempre uma citação de um musical. “Adoro musicais, são uma forma dramática de contar uma história. Penso sempre visualmente, quando penso numa música imagino-a em imagens. E tudo se junta. Também tem que ver com o facto de ter decidido que queria que o livro tivesse muitas imagens, porque gosto imenso de comprar livros ilustrados. Achei que com estes pedaços de música poderíamos ouvir a cantora”, diz.

Sem expectativas, por favor

Para aqueles que ficaram desiludidos com este seu disco por o considerarem muito conservador e estavam à espera que uma pessoa tão fora das normas arriscasse mais, Conchita responde: “Tentem não criar muitas expectativas, porque facilmente vão ficar desapontados. Este é o meu primeiro disco a solo, eu não tinha um reportório, por isso é muito especial para mim. Estou a dar os meus primeiros passos na indústria musical. Venho da pop, adoro música pop, por isso este álbum tinha de ser muito pop.”

Confessa que fez um esforço para sair da sua zona de conforto e aprender coisas novas. “Não sou muito boa a mudar de nota de uma maneira muito rápida. Sou boa a cantar notas longas e depois mudar para a seguinte. Cresci a ouvir Shirley Bassey, isso de alguma maneira formou a minha voz numa determinada direcção. E eu queria conseguir ter maior amplitude, por isso tentei não cantar mais depressa mas mudar de nota de uma forma mais rápida. Ainda não sou suficientemente boa a fazê-lo, mas pelo menos tentei”, diz ao PÚBLICO.

É isso que Tom Neuwirth/Conchita Wurst tem feito ao longo de toda a sua vida. Depois de ter estudado moda, a sua carreira musical foi toda feita através de programas de televisão. Ainda como Thomas Neuwirth concorreu ao programa Starmania e ficou em segundo lugar (perdeu para Nadine Neiler, que em 2011 concorreu ao Festival da Eurovisão e ficou em 18.º lugar). A seguir fez parte de uma boy band (eram os jetzt anders!) e mais tarde, já como Conchita Wurst, concorreu ao programa Die grosse Chance, uma espécie de Ídolos austríaco, e ficou em sexto lugar. No ano seguinte, concorreu ao festival da canção austríaco de onde sairia o concorrente para a Eurovisão e ficou em segundo lugar. Participou entretanto no programa Wild Girls: Across Africa in High Heels, gravado no deserto da Namíbia, e só depois foi escolhida para representar a Áustria no Festival da Canção da Eurovisão em 2014. Ganhou e todos a viram emocionar-se e chorar, ao receber o troféu.

"Quero ter um Grammy"

No seu livro, Conchita Wurst conta que René Berto, o seu agente, viu nela mais do que os outros viam, mesmo mais do que ela própria via em si. Além de pensar fora da caixa, o agente que a levou para a Eurovisão sabia fazer as perguntas certas: “O que queres ser? Onde te vês daqui a dez anos? Qual é o teu objectivo?” São estas as perguntas que lhe fazemos agora. Conchita arregala os olhos, pintados com eyeliner e pestanas postiças, e sorri ao responder. “Eu tenho um objectivo. Não sei se o consigo concretizar nos próximos dez anos. Mas quero ter um Grammy. Eu sou uma cantora, quero ter um prémio Grammy. Não sei se alguma vez receberei algum, mas sou o tipo de pessoa que precisa de visualizar os seus objectivos, só então sei qual o caminho. E vejo aquele Grammy, ali, parado, à minha frente na luz, sei que vou até lá, não sei é quanto tempo vai demorar para lá chegar.”

Quando esteve a cantar e discursar no Parlamento Europeu, em Outubro passado, a convite dos Verdes, embora sem o apoio dos partidos mais conservadores, Conchita Wurst começou por dizer que “era só uma cantora”. Mas é óbvio que é mais do que uma cantora. Quando lhe perguntámos se ao criar esta personagem tinha antecipado que ia ser uma bandeira de tolerância e dos direitos LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgéneros mundialmente, Comchita voltou a ser sincera. “Não quero desapontar ninguém, mas ao criar esta personagem – Conchita Wurst – eu só queria divertir-me. E isso acontece até hoje, 80% disto é para me divertir. Mesmo quando se trata de temas sérios, de que adoro falar, continuo a falar do meu ponto de vista e a dar a minha opinião”, explicou.

“Sinto-me entusiasmada com estes convites políticos, importantes, mas mesmo assim sou só uma cantora. Sei como entreter as pessoas, sei como cantar, sei o que fazer para me sentir bem no palco, mas, quando se trata de política, só sei o que o meu coração me dita. A maior parte do tempo não é uma coisa lógica, não é o correcto, não sei as coisas que se devem saber. Sou uma pessoa comum sem o conhecimento que é preciso ter para se ser um político e ainda bem. Mas como cantora e entertainer tenho o direito de estar ali e dizer o que quero. Por isso acho que estou numa posição muito confortável, ao falar no Parlamento Europeu, porque não represento um partido, que precisa de ser escolhido, sou só eu mesma a falar das coisas que acho serem certas.”

Desde o dia em que subiu ao palco do Festival da Canção da Eurovisão para receber o prémio da edição de 2014 pela sua interpretação de Rise like a Phoenix, muito se passou e algo mudou por sua causa. Usar um vestido, saltos agulha e ter essa barba ainda é uma grande questão? “Não me atrevo a dizer que mudei alguma coisa. Recebo mensagens de muitas pessoas que me dizem que se sentem inspiradas por causa do que faço e que mudaram a sua maneira de pensar. Isso é uma das coisas mais bonitas que podia conseguir com o que faço. Ganhar o Festival Eurovisão da Canção foi um statement, claro que foi. Mas um statement não é suficiente para mudar toda a sociedade. Ainda há um longo caminho a percorrer.”

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