O lado negro das CocoRosie na Ponta do Sol
As CocoRosie são intrigantes. Mas Bianca Casady a solo é-o ainda mais. Na Estalagem da Ponta do Sol, na Madeira, apresentou o seu novo projecto a solo, surpreendente performance musical, onde ficou exposto que o mundo de fantasia delas esconde pesadelo.
Estamos na Estalagem da Ponta do Sol, unidade hoteleira que a partir de uma encosta domina a vila e que é simultaneamente um dos pólos culturais mais vibrantes da Madeira, e ela aponta para o que nos circunda: o som do sino, o casario lá em baixo, a praia, o oceano, o verde das encostas e a tranquilidade. “Não diga a ninguém”, diz-nos ela sorrindo, “mas não fazia a mais pequena ideia que esta ilha existia.”
De alguma forma personifica a artista mundana nova-iorquina, trespassando cultura popular e vanguardas, artes visuais e música, galerias de arte e festivais, sendo ao mesmo tempo música, dramaturga, poetisa, artista e cineasta. Talvez por isso seja estranho vê-la ali, de t-shirt, calções, chinelos e sem a habitual e forte maquilhagem de palco.
Mas, verdade seja dita, ali também nada parece bater certo. Afinal não existem muitas unidades hoteleiras como aquela, sendo em simultâneo um espaço alternativo de cultura, nem é vulgar alguém como Bianca quase estrear mundialmente o seu novo espectáculo na Ponta do Sol.
Na véspera apresentara, pela segunda vez apenas, depois da estreia há semanas em Hamburgo, a sua nova aventura: Bianca Casady & The C.I.A., o seu primeiro projecto solitário fora do contexto das CocoRosie, a dupla que divide há doze anos com a irmã Sierra Rosie. Neste caso é música, mas também teatro, dança, performance e imagem. “É o lado mais negro das CocoRosie”, afirma. Dali sairá um álbum a ser lançado em Outubro. Antes, a 18 de Setembro, haverá Heartache City, o novo álbum das CocoRosie.
Depois do espectáculo de 4ª feira da semana passada, integrado na série Concertos-L (que este ano já levou à Estalagem nomes como Weyes Blood, PZ ou THEESatisfaction e levará nas próximas semanas Johanna Glaza, Batida ou PAUS), a americana ficou mais uns dias, em residência, preparando o espectáculo de 2ª feira, em Londres, no Queen Elizabeth Hall, no âmbito do Metltown, com curadoria de David Byrne.
“Agrada-me adaptar-me aos mais diferentes contextos”, começa por dizer, referindo-se às diferenças entre apresentar-se num pequeno palco, como o da Madeira, ou em Londres, num festival como o Melttown. “E não é apenas as condições técnicas, é também o público, que é diferente. O concerto de ontem foi extremamente sério, a audiência estava realmente compenetrada no que estava a acontecer, não se distraindo, não começando a falar ou a beber copos, como por vezes pode acontecer neste tipo de ambientes. Foi surpreendente, se pensarmos que ninguém sabia ao que vinha. Ao contrário do que se possa pensar às vezes em festivais de vanguarda é mais difícil captar a atenção porque as pessoas podem adoptar a atitude cínica do ‘já vi isto’ e desinteressar-se rapidamente, sem se deixarem envolver.”
Ponto de vista sempre visual
Bianca tem razão. Na Estalagem da Ponta do Sol esteve uma assistência atenta, que lotava por completo o espaço e muitos mais viriam se tal fosse possível, atraídos pelo nome CocoRosie. Alguns turistas, mas a maior parte provinda do Funchal, a meia hora de carro, pessoas que costumam frequentar as actividades culturais da Estalagem – para além dos Concertos-L, a Estalagem é também conhecida por co-organizar em Dezembro o festival MadeiraDig, dedicado às músicas electrónicas, e o Micro International Film Festival de cinema, acreditando na ligação entre cultura e turismo e na atracção de um público multinacional.
O que viram está algures entre a música e a performance. Não há paragens entre as canções. A música é ritualística. Bianca arranca algumas programações, outras vezes empunha um violino ou lança-se em jogos vocais que mais parecem lamentos, enquanto o piano de Jean Marc Ruellan, a bateria de Lacy Lancaster e o baixo de Takuya Nakamura parecem desenhar um duelo à parte, no qual de vez em quando se intromete a guitarra dissonante de Doug Wieselman. Música desconexa, por vezes, noutras parecendo nascer de movimentos de improviso, apontando para o flanco mais inquietante das CocoRosie.
Pelo meio dos músicos, provocando a interacção com estes, anda o bailarino e coreógrafo Bino Sauitzvy. Às vezes parece um palhaço solitário ou um vagabundo, navegando num sonho, à procura de qualquer coisa, mas sem horizonte de futuro. Por detrás dos músicos são projectadas imagens, a maior parte das vezes abstractas, outras parecendo querer contar micro-histórias, procedentes do filme The Dead Saison, que Bianca está a filmar. A luz em palco é ténue, vale-nos a lua para vislumbramos os músicos e Bianca, num dos estremos do palco. Não é o tipo de espectáculo que conforte, mas que desafia.
“Na minha cabeça este espectáculo começou há uns anos, apesar deste colectivo só se ter juntado há sete meses”, conta-nos Bianca. “Como na maior parte das minhas criações começou com uma imagem, comigo rodeada de uma série de pessoas vestidas de smoking, de óculos de sol, alheadas umas das outras, um pouco como estamos em palco. Foi essa imagem muito simples que deu início a tudo. Parece um pouco pateta e talvez seja. Mas é isso. Normalmente é assim, uma imagem, e depois vou desfiando alguns motivos, quase como se fosse um livro.”
Há também um efeito de reacção a doze anos de palco com as CocoRosie. Queria experimentar qualquer coisa que fugisse do âmbito mais clássico do concerto pop. “A estrutura dos concertos pode ser uma armadilha, estando previamente definida e, sim, estou saturada disso. Até os encores já estão previstos”, justifica ela, rindo-se. “Neste espectáculo gosto de estar na sombra, posicionando-me num dos lados do palco, meio invisível, não tenho que ser o centro das atenções. O que interessa é o espectáculo enquanto todo e não eu propriamente.”
O seu desejo é que o foco seja o todo, o espaço, a performance dos músicos e do performer, bailarino e coreógrafo Bino Sauitzvy, com um longo percurso feito de temporadas no Brasil, EUA e, actualmente, Paris, colaborando com as CocoRosie desde 2011. “Conhecemo-nos muito bem, ele sabe exactamente o que eu desejo e isso é importante, até porque a tradução corpórea e imagética que ele faz vem dele. Eu acabo por não ter uma grande participação em termos de direcção.”
Mas Bino Sauitzvy não é a única estrela da companhia. O guitarrista e clarinetista Doug Wieselman é uma figura conhecida das vanguardas nova-iorquinas tendo tocado ao lado de John Lurie e Lou Reed ou, nos tempos mais recentes, com Antony. “Trabalho com ele desde que colaborámos em duas produções de Robert Wilson”, conta Bianca. “É um extraordinário orquestrador e temos uma relação musical muito especial. Compreendemo-nos muito bem e ele tem longa experiência no teatro. Relaciona-se com o material que lhe é proposto de uma forma muito prática e ao mesmo tempo é muito criativo e provocador.”
Numa entrevista recente de Robert Wilson – com quem as CocoRosie colaboraram nos espectáculos Pushkin’s Fairy Tales e Peter Pan – este afirmou que trabalhar com elas era diferente do que com músicos como David Byrne, Philip Glass ou Tom Waits, no sentido em que elas eram também artistas visuais. E isso sentia-se na sua aproximação à música.
“Sim, é verdade, que o meu ponto de partida é sempre visual”, concorda ela, acrescentando que quando trabalhou em Peter Pan, começou por criar desenhos animados antes de chegar à música. Já no caso da música das CocoRosie o ponto de partida pode ser, por exemplo, a roupa. “Não existe uma receita. O ponto de partida pode ser muito diversificado. Neste espectáculo foco-me mais na escrita e na concepção. O plano era não me imaginar em palco, mas não sou uma coreógrafa, apesar de pensar em termos de movimento também, por isso não me vislumbro só a dirigir. Tenho que estar lá também.”
Há uma coisa da qual tem a certeza. Nas suas canções, peças de teatro, filmes ou trabalhos de artes visuais nunca existem narrativas clássicas. O que temos, na maior parte das vezes, é a exploração de metáforas de aprisionamento social e emocional, ou a aposta na ironia através da feminização de figuras híper-masculinizadas. “O que me interessa é acima de tudo a suspensão, a abstracção, a criação de ambientes. Estou mais interessada na viagem do que no destino”, expõe. “Mesmo nas peças de teatro não existe um fim, mas sim reticências, uma espécie de névoa ou de sonho, mesmo se neste espectáculo são pesadelos.”
Em relação às CocoRosie, o seu projecto a solo é mais torturado, afirma ela. “Com a minha irmã há uma série de dualidades – bonito e feio, candura e experiência – que aqui são desarrumadas, ou mostradas de forma mais inquietante. Nas CocoRosie eu personifico o lado mais negro, o lado mais errado do ser. Aqui não existe o outro contraponto.”
Para já, em Setembro, haverá o novo álbum das CocoRosie, naquilo que Bianca diz ser um “regresso à essência” do duo. “Quando começamos a Sierra fazia a maior parte da música, mas eu ao longo dos anos fui-me envolvendo cada vez mais na componente musical. Agora ela voltou a ocupar-se mais da música e o resultado é um disco mais psicadélico, caseiro, romântico e sujo, gravado de forma rudimentar.”
Depois do lançamento desse álbum haverá uma digressão com a irmã e mais tarde haverá a edição do seu registo a solo, seguido de mais concertos. E aí, quem sabe, também Lisboa e Porto poderão ver aquilo que a Ponta do Sol assistiu em primeira mão. Para ela, claro, a vida prossegue entre viagens. “Tenho muitos amigos músicos que não gostam de viagens. Eu gosto. Está tudo programado, não tenho que fazer opções e tomar decisões. Principalmente, em dias, como o de hoje, neste local magnífico, não posso pedir mais do que isto: acordar, beber chá e criar pela manhã. As manhãs são o melhor momento do dia.”