A liberdade de escolha e a dignidade da pessoa humana
Autonomia e liberdade de escolha, no público ou no privado, pressupõem níveis de instrução, de rendimento, de saúde, de liberdades cívicas e políticas adequadas.
Faz sentido, mas não é óbvia e não esgota as clivagens do espaço político. A distinção não deriva de nenhuma superioridade moral, ética, técnica ou de qualquer outra da esquerda sobre a direita (ou vice-versa). Certa esquerda tem advogado uma superioridade moral (vejam-se alguns clássicos do socialismo ou, entre nós, o livro de Álvaro Cunhal A superioridade moral dos comunistas) enquanto a direita advoga a superioridade técnica, de uma maior capacidade de gestão e como hipotético corolário, da capacidade de governação. Está por demonstrar a maior capacidade da direita para gerir. Veja-se o caso da gestão do grupo Espírito Santo, como exemplo. Mas mesmo que em média, tal fosse verdadeiro, não constituiria um argumento para a maior capacidade de governação (no campo técnico) por várias razões. A primeira é que os objetivos da gestão no sector privado (maximizar lucros ou vendas) são diferentes dos do sector público (serviço público), a segunda é que a natureza da competição no privado é diferente da do público (como veremos), a terceira é que, do ponto de vista do cidadão, o que interessa não são apenas os ganhos de eficiência na produção de bens e serviços de interesse público (produzidos no público, no privado ou no terceiro sector), mas a forma como esses ganhos se repercutem no esforço fiscal do contribuinte ou na tarifa paga pelo serviço. De que nos vale que uma empresa privada, a quem foi concessionado um serviço de abastecimento de água, seja mais eficiente do que uma pública se os ganhos de eficiência se traduzem apenas num aumento dos lucros e não numa repercussão parcial desses ganhos de eficiência na descida da tarifa paga pelos consumidores?
2. Clarificado o campo em que não deve ser colocado o debate ideológico, centremo-nos no essencial a partir de dois conceitos fundamentais: liberdade de escolha e dignidade da pessoa humana. Não é por acaso que a expressão “liberdade de escolha” aparece dez vezes no programa eleitoral da coligação PSD-CDS e apenas uma no do PS. Ali, surge associada às políticas públicas essenciais: na Segurança Social, na educação e na saúde. Há três níveis distintos em que “liberdade de escolha” deve ser discutida. O valor do conceito em si, a possibilidade técnica de o implementar no sector público, e o das consequências práticas. O argumento conservador segue uma teoria da defesa da justeza da distribuição inicial dos direitos de propriedade, numa dada sociedade, e da sua redistribuição. Aqui o velho libertário Nozick continua a servir de inspiração filosófica. O paradigma é obviamente o indivíduo e o mercado competitivo onde a liberdade de escolha é máxima. Dada a natureza das trocas ser voluntária, desde que o que cada indivíduo possui não tenha sido obtido por roubo, violência, extorsão, corrupção, etc. o que obterá do funcionamento do mercado é também considerado justo. Desigualdades que resultem do funcionamento dos mercados são plenamente justas e não deverão ser corrigidas. Neste âmbito, a dimensão do Estado, que obtém os seus recursos através da tributação, deve ser mínima, pois está, através dos impostos, a diminuir essa liberdade de escolha. O Estado deverá assegurar apenas as funções de soberania essenciais (defesa nacional, justiça, infraestruturas) sem as quais os próprios mercados não poderiam florescer. Quanto maior o peso do Estado menor a liberdade, entendida no seu sentido negativo (Isaiah Berlin), pois maior a coerção sobre o indivíduo. Assim argumentam os autores neoliberais de direita.
3. A tentativa de transposição da “liberdade de escolha” dos bens e mercados privados para os bens que devem ser financiados publicamente, quer pela sua natureza (bens públicos), quer porque embora sendo bens mistos (educação, saúde), são considerados meritórios do ponto de vista constitucional, levanta vários problemas práticos e éticos que parecem ser ignorados pelos defensores da liberdade de escolha no sector público. Antes do mais, os equipamentos associados ao fornecimento destes serviços (tribunais, hospitais, sistemas de abastecimento de água e escolas) têm uma localização territorial e apresentam algumas economias de escala, sobretudo os três primeiros. Estas duas características fazem com que, quer por razões de eficiência produtiva e de minimização de custos de transporte, quer por razões de equidade (bens de mérito) não deva haver competição no sentido em que o termo é usado no privado. No mercado de bens privados as empresas que não satisfazem os consumidores, desaparecem do mercado. No caso dos bens públicos, ou mistos, mas em que se considera que todos deverão ter semelhantes condições de acesso, de qualidade e de sucesso (educação), o sistema de incentivos tem de ser diferente do sector privado. Desde logo porque as entidades mais ineficientes (que as há) nunca poderão fechar desde que a procura seja relevante. Fecha-se um hospital público porque é ineficiente? Fecha-se uma escola porque a taxa de insucesso escolar é elevada, mesmo controlando pelas características socioeconómicas dos pais? Obviamente que a resposta, nos dois casos, é não. O que se deverá fazer é aumentar a qualidade na prestação de serviços de saúde e de educação nos estabelecimentos ineficientes, para não privar aqueles que, ou por não terem rendimentos, ou por não terem conhecimentos, não conseguiriam exercer essa “liberdade de escolha”. Isto significa que os incentivos para os ganhos de eficiência no sector público devem existir, mas não podem ser baseados na liberdade de escolha, do lado dos utentes, nem no risco de falência, do lado das entidades prestadoras de serviços.
4. Para além da questão da não praticabilidade da liberdade de escolha em muitas situações, existe a questão das consequências dessa liberdade quando tal for possível. A principal consequência desse acréscimo de liberdade é o aumento das desigualdades, como bem foi já argumentado aqui por Ana Rita Ferreira (PÚBLICO de 06/08/15). As desigualdades sociais expressivas, a pobreza, a exclusão social atentam contra o princípio da dignidade da pessoa humana, cuja noção intuitiva é imemorial, mas que teve uma expressão maior em Kant, e está consagrado na nossa Constituição, logo no artigo primeiro. Este princípio está, para pessoas de esquerda, expresso nos direitos de cidadania e traduz-se em conceitos fundamentais como os de liberdades positivas (Berlin), bens primários (John Rawls) ou capacidades básicas (Amartya Sen). Na sua diversidade, remetem para um conceito de liberdade diferente, e que está associado à capacidade individual de ter autonomia para desenvolver os planos de vida que cada um considera mais adequados para si próprio. Nesta perspetiva, o Estado é considerado como um instrumento para, através das políticas de redistribuição de rendimento e de promoção de igualdade de oportunidades, alargar a esfera de liberdade e autonomia de todos, mas em particular daqueles que, na sua ausência, não teriam condições para a exercer. Autonomia e liberdade de escolha, no público ou no privado, pressupõem níveis de instrução, de rendimento, de saúde, de liberdades cívicas e políticas adequadas.
Nem o Estado mínimo, nem a “liberdade de escolha” na privatização parcial da Segurança Social, e proposta na educação ou na saúde pela coligação PSD-CDS, asseguram níveis adequados de dignidade da pessoa humana.
Professor do ISEG/ULisboa