Diz o público, dizem os músicos: Cem Soldos no mapa, Bons Sons obrigatório

O festival Bons Sons acolheu uma Ana Moura notoriamente feliz por participar na criação comunitária de Cem Soldos, mostrou um Bruno Pernadas imaculado e confirmou que Alex D’Alva Teixeira é verdadeira estrela pop. Aguardemos por 2016.

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ANA MOURA Público / Miguel Madeira
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ANA MOURA Público / Miguel Madeira
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Festival Bons Sons Público / Miguel Madeira
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BRUNO PERNADAS Público / Miguel Madeira
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BRUNO PERNADAS Público / Miguel Madeira
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Festival Bons Sons Público / Miguel Madeira
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Festival Bons Sons Público / Miguel Madeira
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EDU MIRANDA TRIO Público / Miguel Madeira
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Festival Bons Sons Público / Miguel Madeira
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D’ALVA Público / Miguel Madeira
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D’ALVA Público / Miguel Madeira
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Festival Bons Sons Público / Miguel Madeira
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DUQUESA Público / Miguel Madeira
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DUQUESA Público / Miguel Madeira
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Festival Bons Sons Público / Miguel Madeira
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Festival Bons Sons Público / Miguel Madeira

Por esta altura, estamos na manhã de domingo, recorde-se, Tó Trips, depois das duas actuações com os Timespine que partilha com Adriana Sá e John Klima, sábado, num auditório esgotado, está agora no Palco Giacometti a preparar com o percussionista João Doce, que conhecemos nos WrayGunn, o concerto que ali dará ao final da tarde. Alguns curiosos sentam-se a observar, antes de rumar a um dos cafés para o pequeno-almoço retemperador.

O verde da relva artificial frente ao Palco Lopes Graça está já polvilhado de pequenos grupos a recuperar energias para a despedida, que este domingo se fará, naquele palco, com os muito aguardados Retimbrar (ver entrevista no último Ípsilon) e o obrigatório Camané.

No outro extremo do largo, um pai conduz o filho pequeno na subida até ao topo da estrutura ali instalada, que sobe até a um miradouro sem vista: a construção de contraplacado no topo, assemelhada a uma fortaleza, será metáfora para uma marca do nosso tempo: o isolamento de terras e de gentes, de gentes em cada terra. Não será metáfora adequada para o Bons Sons. Nele, Cem Soldos abre-se ao exterior, mostra-se e recebe o que quem cá vem tem para mostrar.

No ano em que o festival assumiu pela primeira vez cadência anual, comprovou-se uma vez mais que assim é.

Logística afinada
Com a logística afinada (palcos e campismo melhorados, mais zonas sanitárias), com uma organização dos nomes em cartaz que permite assistir a todos os concertos sem nos vermos obrigados a escolhas difíceis, o Bons Sons agora anual, torna-se verdadeira montra de música, festejo do que a que por cá se faz tem para oferecer, sem hierarquias: e, portanto, na noite de sábado, os leirienses Nice Weather For Ducks, banda na primeira fase da vida, ganham direito a mostrar a sua música de trinados eléctricos pós-rock e ginga Vampire Weekend perante milhares no Palco Eira (versão transfigurada de Dying young, dos conterrâneos Silence 4, incluída).

Nove anos depois da primeira edição, o Bons Sons é um festival maduro, com identidade plenamente definida e organização comunitária assumida com orgulho e naturalidade. A existência bienal ficou para trás e o desafio, agora, é manter o ritmo e as virtudes, ano após ano. A organização aponta para que passem pelos quatro dias de festival 40 mil pessoas (o que significa que, todos os dias de Bons Sons, a aldeia de mil habitantes multiplica dez vezes a sua população).

O número cumpre as expectativas e o director artístico Luís Ferreira afirma que “para o exterior, superou o que esperávamos”. Ou seja, o acolhimento dos visitantes e a integração com a aldeia correu harmoniosamente, fruto também do melhoramento das estruturas montadas em Cem Soldos.

“Aquela ideia de que o que dás, recebes em dobro, é verdade. As pessoas sentem esta generosidade da aldeia que se dá para que isto aconteça”. Ainda assim, não é ainda certo que exista um festival em 2016. Nada de angustiante. “Tem sido sempre assim”. O festival é criação comunitária e é a comunidade que decide como e se quer continuar a fazê-lo. As promessas da organização de que libertariam o peso sobre a aldeia na produção do festival foram quebradas, explica Luís Ferreira, devido aos cortes no financiamento sofridos, o que reduziu o investimento exterior, privado ou municipal, a 15% dos 450 mil euros orçados para o Bons Sons. E portanto, no final da bem-sucedida edição de 2015, a aldeia reunir-se-á para definir o passo seguinte.

Certo é o desejo de que a dinâmica de Cem Soldos ao longo do ano se mantenha, atraindo público para os concertos, teatro, workshops ou residências a desenvolver. “A marca Bons Sons tornou-se muito forte. Não conseguimos dinheiro, mas conseguimos esse valor”. Para Luís Ferreira, chegou-se agora a um momento de passagem. “Ganhámos poder e há o perigo de passarmos do carinho e do prazer que reveste o festival para também começarmos a ser vistos como um festival a caminho do mainstream. Mas o projecto não se quer conformar e, tal como até aqui, continuará a reinventar-se”.

Da aldeia para a aldeia
Há três anos, para explicar os passos que o festival dava, edição após edição, Luís Ferreira citava um ditado utilizado pela sua mãe: “Barco que não tem rumo não aproveita vento algum”. Três anos depois, esta criação do Sport Clube Operário de Cem Soldos (SCOCS), pensada e montada da aldeia para a aldeia (os voluntários afadigam-se pelo bem comum, ou seja, pelos lucros que reverterão para a comunidade), parece óbvio que o Bons Sons sabe para onde quer ir – o vento sopra de feição. E isso é reconhecido pelo público e é reconhecido pelos músicos (que rapidamente se transformam também em público).

Nuno Rodrigues, ou seja, Duquesa, estava de madrugada a dançar com os seus “vassalos”, ou seja, a banda que o acompanha, a batida incessante de Nigga Fox. Benjamim, que tocara no Bons Sons na quinta-feira, foi completar a sua digressão Volta a Portugal em 33 Dias à Figueira da Foz, sexta, e a Ílhavo, sábado, e, nesse mesmo sábado, já passeava de sorriso no rosto em Cem Soldos.

E Alex D’Alva Teixeira, uma das estrelas do festival, verdadeira estrela pop que o país não demorará a descobrir (e, se não descobrir, é o país que perde), despede-se do concerto apoteótico no Palco Giacometti a exclamar: “Queremos voltar para o próximo ano. E no a seguir. E no outro a seguir disso. E sempre que nos quiserem”. Ana Moura, que à entrada em palco para um concerto em que o fado foi dessacralizado, dançado, acompanhado com palmas e dança, diria que há muito queria dar a sua música a Cem Soldos e ao seu festival especial. Abandonaria o palco, depois do encore, depois do fado corrido em correria cada vez mais rápida, com a mão sobre o coração e um sorriso tão verdadeiro e tão feliz: “Obrigada, Bons Sons”.

Foi da fadista de Desfado, como seria de esperar, o momento mais concorrido da noite. A velha guarda cem soldense e das terras em redor, miúdos aos ombros dos pais, punks que gritarão por encore no final, tudo junto para a festa. Porque este concerto no final da actual digressão de Ana Moura, e por isso mesmo, com um alinhamento especial (ouviu-se o No expectations, dos Rolling Stones, como ponte entre o blues e o fado; tivemos direito a um instrumental com o teclista João Gomes a dar fogo soul à desgarrada), foi isso mesmo: um concerto de fado com espírito rock, sem que a alma fadista saísse comprometida (o grão da voz cheia de Ana Moura, não o permitiria).

Com bateria, teclado e baixo a juntarem-se à viola e à guitarra, ouviram-se A fadista, “mulher de vício e pecado”, ouviu-se o resumo da gloriosa tragédia fadista, inevitavelmente sem a presença do teclista e do baterista, em Porque teimas nesta dor (“porque teimas nesta dor / porque não lhe queres dar fim”) e, já com teclas e bateria reunidos à banda, Búzios (“vazio tens teu coração / na porta do medo”).

O que fica, porém, é aquele ritmo de chula a irromper pelo trinado das guitarras (e o público dança e bate palmas no compasso certo), é a popular A casa da Mariquinhas que se ouve pela segunda vez neste dia (à tarde, tocara-a com balanço brasileiro o Edu Miranda Trio, na roda de baile que instalou frente à Igreja de São Sebastião).

E é, por fim, o Desfado, canção resumo da relação, hoje, de Ana Moura com o fado que abraçou há muito. Ela cala a voz para que o público cante, e o público canta, obviamente. O fado prolonga-se, cantado pela fadista e cantado pelo coro fadista que são os milhares perante si. Ana Moura e os seus músicos (Ângelo Freira, guitarra portuguesa; Pedro Soares, viola; André Moreira, baixo; João Gomes, teclas; e Marcos Oliveira, bateria) curvam-se numa vénia prolongada e saem de palco.

“Ninguém acaba assim”, gritam os punks, meio a sério, meio a brincar, e, pouco depois, há-de estar tudo a acelerar no corrido do fado que há-de desembocar no ritmo latino de Guantanamera. Festa é festa. A do fado que Ana Moura ofereceu ao Bons Sons foi muito sincera, muito sentida. Chegou quase no fim. Chegou quando o penúltimo dia de Bons Sons já nos tinha oferecido um par de memórias a preservar.

Se o concerto dos Tranglomango está a lotar a Igreja de São Sebastião, podemos descer até ao Auditório para acompanhar as Curtas Em Flagrante, plataforma com sede em Castelo Branco que dá a jovens cineastas portugueses oportunidade para mostrar o seu trabalho em itinerância, e ver como Joaquim Pavão transformou a sabedoria popular do bisavô em planos expressionistas (Miragem) ou como João Filipe Silva filmou uma curta muito realista: um casal, um bebé que há-de nascer, violência real e simbólica, um chuto de heroína e um amor amaldiçoado (Ventre).

“Vamos tarraxar?” 
Subimos novamente à aldeia e o Verão nublado deste sábado em Cem Soldos torna-se radioso, tão luminoso quanto as canções em estado de graça de Nuno Rodrigues, vocalista dos barcelenses Glockenwise que, a solo, assina como Duquesa. No coreto que é o Palco Giacometti, canções como Ice cream, Time ou Douchebag mostraram um rock’n’roller com alma pop animada por um coração que bate com fervor adolescente.

“Sou o Nuno e escrevo canções de amor e hinos para juntas de freguesia”, apresentou-se. Ouviram-se as canções de amor e ouviu-se o hino (Abade nation, dedicado a Abade do Neiva, a pequena localidade em que cresceu). O sol está salvo. Nestas canções, não há ponta de neblina. Tudo luminoso. Brilho que ganharia cores garridas e ginga monumental pouco depois, quando os D’Alva sobem a palco para, em sentido figurado, deitar a casa abaixo.

O público começava a acumular-se no largo. O público sabia ao que ia, como se comprovava, por exemplo, pelo grupo de raparigas fãs que jogavam um jogo curioso: manter uma conversa utilizando citações de letras da banda que se estreou em 2014 com #batequebate. Alex D’Alva Teixeira, o vocalista, não perdeu tempo. Entrou em palco a mostrar como bater palmas no compasso certo e trocou coreografias com Carol, a segunda vocalista. Explicou que este era um concerto em modo D’Alva Redux mas ninguém se queixou. Pop mais pop não há.

Pop no tempo certo, com as confluências de géneros desta segunda década do século XXI trabalhadas com intenção. D’Alva incita “vamos tarraxar?” e o povo “tarraxa” ao sabor do ritmo quebrado e dos teclados tropicais. Alex é homem do hip hop que rappa com convicção, é cantor que desce aos falsetes Michael Jackson enquanto se lança em nova coreografia, é o mestre-de-cerimónias que põe o público em movimento com um prazer pelo palco que se torna contagiante, irresistível. “Putos mandam ódio, mas em três tempos dançam na pista”, canta algures. Em Cem Soldos, não houve ódio. Tudo amor. Livre leve e solto, Não estou a competir, Barulho e Frescobol no final, antes do encore.

Ben Monteiro, o homem dos teclados, há-de saltar do coreto para os braços do público, o público gingará tanto quanto a banda em palco, enquanto se ouve esta música onde há requebro africano, cintilar muito 80s, hip hop globalizado e refrães para fazer a alegria das gentes. É oficial: Alex D’Alva Teixeira tem pinta e densidade de estrela pop – saibamos nós aproveitá-lo.

Muitas horas depois, os resistentes dançavam tudo o que tinham para dançar com Nigga Fox, DJ Firmeza e Nidia Minaj - e até receberam como presente uma remistura inesperada dessa canção ícone que é Pimba pimba, de Emanuel, que surgiu ali entre a rebita, o kuduro e aquele tecnho primitivo, cru, que é coisa fresca e ribombante a que é difícil resistir.

Horas antes, o público aglomerou-se no Palco Lopes Graça para acompanhar as canções intrincadas de Bruno Pernadas, big band pop, combo jazz com prazer pela folk, pela pop Beatlesca, pelos polirritmos do afro-beat ou pelas harmonias vocais abençoadas dos Beach Boys.

Acompanhado por uma banda de oito músicos, onde encontramos, por exemplo, Francisca Cortesão (Minta), Afonso Cabral, dos You Can’t Win Charlie Brown, ou João Correia (o senhor Tape Junk), o autor de How Can We Be Joyful in a World Full of Knowledge, líder enfiado num casaco com capuz, líder informal, portanto, guiou a banda por uma música com várias camadas interpretada com toda a precisão, bloco de música após bloco de música: uma visão caleidoscópica da música popular urbana que já cativou muitos, como se comprovou pela forma como esses tantos seguiam, atentos, as canções feitas longas viagens por cenários musicais tão inesperados como, no momento seguinte, bem-vindos.

O festival encerrou domingo com mais histórias para contar: as de Tó Trips e dos Peixe:Avião, as dos Retimbrar e de Camané, e, claro, as que as pessoas que ocuparam a aldeia, sem resistência, aqui recolhem e que levam para contar. Espalha-se a palavra. Esperemos por 2016. Cumprir-se-ão 10 anos de festival. Bons Sons obrigatório, Cem Soldos no mapa.

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