Perante o imenso fado de Ricardo Ribeiro, perguntámos “que força é esta a dos Bons Sons?”

Este domingo chega ao fim a edição 2014 do Bons Sons. 35 mil pessoas passaram por Cem Soldos desde quarta-feira. Antes de chegada de Sérgio Godinho, domingo, vimos sábado um concerto magistral de Ricardo Ribeiro. Terá sido “o” concerto do Bons Sons, o festival de música que é mais que isso.

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Miguel Madeira
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Não sabíamos explicar como, misturando álcool, detergentes, tintas ou vinho, nasciam aquelas imagens semelhantes a paisagens interestelares ou submarinas, imagens abstractas a que Catarina Pereira, artista das Caldas da Rainha, chamou adequadamente “pinturas fotográficas”. Explicámos ao miúdo o melhor possível como os materiais seriam misturados e apontámos as imagens como resultado do processo. Como passávamos de uns para as outras, para isso, não tínhamos palavras.

Horas depois, quando o fadista Ricardo Ribeiro cantava, caso a mesma criança nos perguntasse como nascia aquilo que via e ouvia perante si, não conseguiríamos fazer melhor. Descreveríamos o material utilizado (uma voz, guitarra portuguesa, viola e viola baixo) e apontaríamos para o palco: eis o resultado. Mas não conseguiríamos explicar como se passava do material utilizado para aqueles sons, para aquela voz, para música tão imponente, arrepiante.

Este foi o dia em que Tiago Sousa suou (sim, estava realmente muito calor) ao interpretar num auditório esgotado as suas belíssimas peças a meio caminho entre o improviso livre e o cuidado de compositor muito certo da sua caminhada (ouviram-se excertos de Samsara ou, já em encore, Insomnia); em que a Igreja de São Sebastião esteve cheia (e nem era domingo) para ouvir Mila Dores (e as suas escadarias tremeram com os bombos e demais percussão dos Tocá Rufar); em que os Torto de Jorge Coelho levaram rock em convulsão, descontruído com ferocidade, perante a torreira da tarde no palco Eira; e em que Norberto Lobo e João Lobo, no Palco Giacometti, ainda durante a tarde, criaram um furacão a partir de micropartículas rock (fogo Hendrix e psicadelismo fogoso) e de uma bateria infernal: foram viagem folk, quando a guitarra eléctrica foi trocada pela acústica, sob chão free-jazz (a terra tremeu e foi bonito de ver), avançaram com ligeireza até paisagem africana (a serenidade desceu sob a terra e foi bom senti-la).

Sábado foi o dia em que os Guta Naki deram o seu último concerto e, como o público do Bons Sons é generoso, não podiam ter melhor despedida; em que, noite alta, os Los Waves, com o seu rock’n’roll que é também funk-punk à Franz Ferdinand e pop digital com a cabeça nas estrelas, à MGMT, atearam o rastilho sobre a eira e despediram-se com uma versão dos Mando Diao, Sheepdog, que pôs as gentes animadas ainda em maior rebuliço – e eis uma multidão dançando infatigavelmente as canções de uma banda que compensa em energia e gozo pelo palco a ausência, por agora, de uma personalidade plenamente definida (são ainda súmula de diversas sonoridades do dito indie à século XXI). Sábado foi o dia de todos eles e dos Aduf e da sua tradição portuguesa, ibérica, magrebina, vestida em roupagens jazz e prog, acrescida de cenografia (quatro adufes gigantes tocados por percussionistas performers que, parece-nos, acabam por desviar as atenções do essencial, a música, mais do que gostaríamos). Foi a noite do concerto de Noiserv que transbordou do palco Giacometti, literalmente: a multidão enchia o largo, e um pouco acima, frente à sede da Sociedade Cultural e Operária de Cem Soldos, outra multidão seguia as imagens do concerto projectadas na parede de um edifício. Foi o dia de todos eles, repetimos, e da festa final com os ritmos quebrados, kudurados, techno mutantis, de DJ Maboku e DJ Marfox. Mas foi, principalmente, o dia de Ricardo Ribeiro, autor de um concerto superlativo que entrará não só para a história dos Bons Sons 2014, mas para a história de todo o festival.

O fadista de Largo de Memória, título que representa na perfeição quem é o que faz Ricardo Ribeiro, subiu a palco às 23h. Abandonou-o cerca de hora e meia depois perante um público rendido ao seu talento, à imensidão da sua voz, rendido àquele homem que nos toca fundo quando ouvimos os primeiros versos do Fado Alentejo (“ó terra morena deitada ao sol”), o último do concerto, e sentimos neles, cantados assim, a imensidão do terra e do tempo. Ricardo Ribeiro é um justíssimo guardião da tradição que explica o que é o fado menor e o fado corrido de onde nasceram todos os outros, é o fadista que recita a Toada de Portalegre de José Régio, que recorda Armandinho e que, desarmante na naturalidade com que ocupa o palco, surpreende-nos com imitações divertidas, em jeito de homenagem, de vozes que admira: foi Tony de Matos, Vicente da Câmara, Carlos do Carmo, António Zambujo e Maria da Fé cantado o clássico Nem às paredes confesso, já depois de o público o ter cantado para ele.

Nunca temos Ricardo Ribeiro pela metade. Temo-lo na totalidade: bem-humorado e brincalhão, cantor de uma intensidade impressionante, voz que atravessa os séculos e nos devolve a nós próprios (ponte entre viela de Alfama ou da Mouraria e aqueles melismas árabes que cobrem os versos de uma solenidade irresistível). Fadista que dobra e prolonga as sílabas para que lhes seja desvendado o sentido mais profundo: “Só quem não tem coração / É que não tem uma porta / P’ra deixar entrar o amor” (era a Porta do coração, de Carlos Ponte: “gosto muito dos poetas populares, porque conseguem dizer de forma simples as coisas importantes”, apresentou).

Depois de um dia, sexta-feira, recheado de bons concertos, os dos Gaiteiros de Lisboa, Gisela João, Samuel Úria e Capicua, fomos verdadeiramente privilegiados. Porque tivemos Ricardo Ribeiro, porque tivemos a acompanhá-lo, e ao viola Jaime Santos e o viola baixo Francisco Gaspar, esse génio da guitarra portuguesa chamado Ricardo Rocha. Encontro de gigantes, para nosso prazer. “Ah, mas vocês gostam de fado”, disse Ricardo Ribeiro ao ouvir os aplausos entusiasmados com que um dos primeiros temas foi recebido. Como não gostar, Ricardo, deste fado, assim cantado e assim tocado?

No ano que assinala o fim de um ciclo no Bons Sons, como disse ao PÚBLICO o director artístico do festival, Luís Ferreira, terão passado pelo festival 35 mil espectadores. Começou quarta-feira com a recepção ao campista, acolheu concertos de JP Simões, Galandum Galundaina, Gisela João e demais supracitados, despediu-se domingo com os novos Ermo ou Memória de Peixe e com a sabedoria de veteranos como António Chaínho ou Sérgio Godinho.

A obra comunitária da aldeia de mil habitantes criou uma nova comunidade de dezenas de milhares durante quatro dias. Agora, é tempo de olhar o futuro. O eixo manter-se-á o mesmo: “a aldeia e a música portuguesa”. Os objectivos igualmente: devolver à comunidade o que a comunidade cria voluntariamente. Luís Ferreira diz que tudo está em aberto: a internacionalização dos públicos, a possibilidade de passar de bienal a anual. Desde 2006, com o crescimento do festival, com Cem Soldos colocado no mapa, reconhecido pelos músicos que dele saem deslumbrados e com o público que descobre uma outra forma de viver e fazer um festival. “Conseguimos algo como o Bons Sons, conseguimos criar um discurso e uma narrativa sobre nós próprios, o que é muito importante”, diz Luís Ferreira. “Faz crescer o ego e isso é o mais importante para combater a desertificação”: Luís vê os habitantes empenhados na sua aldeia e nas suas realizações, vê como aqueles que saem se mantêm próximos, interessados em mantê-la viva, activa.

No último dia do Bons Sons 2014, domingo, cansado como cansados estão todos aqueles que se empenharam na criação do festival, Luís Ferreira olha o futuro com entusiasmo. E vive ainda este presente com oito anos de idade chamado Bons Sons. No dia em que tocará Sérgio Godinho, Luís tem “uma canção extraordinária” na cabeça, “Que força é essa?”. Atravessa a aldeia, vê as pessoas e a animação, ouve as bandas, passeia pelas ruas, fala com todos aqueles que mantêm o festival em funcionamento e, orgulhoso e feliz, pergunta-se o mesmo. “Que força é esta?”

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