O Brasil em Locarno com filmes que não estão “nos pratos do dia”
O cinema brasileiro teve um ano peculiar no certame suíço, com filmes feitos por brasileiros no estrangeiro e o colectivo Tela Brilhadora de Júlio Bressane.
Para lá da presença das curtas de Leonardo Mouramateus História de uma Pena e Bruno Carboni O Teto Sobre Nós no concurso de curtas Pardo di Domani, houve Sérgio Oksman no concurso principal com O Futebol e Petra Costa na competição secundária Cineasti del Presente, dirigindo a meias com Léa Glob Olmo and The Seagull. Dois dos melhores filmes que vimos em Locarno em 2015; dois filmes que se inscrevem nas actuais tendências “híbridas” a meio caminho entre o documentário e a ficção, que procuram encontrar novas formas de contar histórias e que, nesse aspecto, reflectem também o trabalho ancorado na realidade, de cineastas como Queirós ou Renata Pinheiro.
Mas dois filmes que são filmes brasileiros sem o serem verdadeiramente. Olmo and The Seagull é uma co-produção entre Dinamarca, Portugal, Suécia, França e Brasil, inteiramente ambientada em Paris, que acompanha o quotidiano de dois actores (ele francês, ela italiana) durante os nove meses de uma gravidez, assinada a meias por uma brasileira e por uma dinamarquesa.
E embora O Futebol seja inteiramente passado em São Paulo, Sérgio Oksman está radicado em Espanha há vários anos e o seu filme é oficialmente uma produção espanhola; ao PÚBLICO, diz até conhecer relativamente mal o que se faz hoje no cinema brasileiro – reconhece O Som ao Redor de Kleber Mendonça Filho como um filme “genial” e Branco Sai Preto Fica de Adirley Queirós como o tipo de obra que gostava de poder fazer, mas maioritariamente acaba por aceder apenas àquilo que chega a Espanha, e que é uma fracção da produção.
Essa fracção que viaja mais facilmente fora do circuito de festivais foi ilustrada pelo filme de encerramento oficial de Locarno, com direito a projecção pública na Piazza Grande logo após a cerimónia de entrega de prémios. Heliópolis, de Sérgio Machado (Cidade Baixa), inspira-se na história da Orquestra de Heliópolis, o equivalente paulista da nossa Orquestra Geração ou das orquestras juvenis venezuelanas, formada por jovens músicos daquela favela de São Paulo. Inscreve-se na linhagem de filmes “sociais” que Cidade de Deus (Fernando Meirelles), Central do Brasil (Walter Salles) ou Tropa de Elite (José Padilha) popularizaram internacionalmente e traz a chancela do estúdio americano 20th Century-Fox – a sua presença na Piazza Grande é sinal de um título com potencial “grande público”, talvez um teste para uma aposta internacional do estúdio.
Tela Brilhadora
E, depois, dentro e fora disto tudo, há Júlio Bressane, no duplo papel de jurado e cineasta. O veterano carioca de 69 anos, Herói Independente (isto é, homenageado) do IndieLisboa em 2011 e autor de obras como Matou a Família e Foi ao Cinema, Memórias de um Estrangulador de Loiras e Dias de Nietzsche em Turim, esteve presente no concurso de Locarno com Educação Sentimental em 2013, e foi convidado este ano para presidir ao júri da competição de primeiras e segundas obras Cineasti del Presente. Aproveitou para trazer na bagagem o seu novo filme, Garoto, adaptação de um conto de Jorge Luis Borges que faz parte de um “quarteto” de filmes que ajudou a produzir sob o genérico Tela Brilhadora.
Em longa conversa com o PÚBLICO num intervalo dos seus deveres institucionais, Bressane evocou as memórias da sua primeira viagem a um festival internacional – precisamente Locarno, em 1967, com a sua primeira longa-metragem, Cara a Cara, no que descreve como uma “experiência tenebrosa”.
“O filme foi massacrado, passou com indiferença e até desprezo. Muitos críticos profetizaram que eu tinha encerrado precocemente a minha carreira... Fiquei 23 anos sem mostrar filmes nos festivais, todos os festivais recusavam os meus filmes, mesmo Locarno, sem ter nenhum tipo de reconhecimento. Então tudo isso me deixou bastante surpreso por ainda estar vivo para poder assistir a essa reviravolta...”
Contemporâneo de um momento fulcral na história do cinema brasileiro – a década de 1960 que trouxe Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Ruy Guerra... – Bressane foi desde sempre identificado como cineasta “marginal”, face à natureza iconoclasta, de baixo orçamento, de uma produção inteiramente feita “à margem” do sistema estabelecido. “Nunca fui admitido dentro da produção do cinema brasileiro,” explica, “e essa história de cinema marginal hoje pode ter um certo charme mas na altura foi uma marcação a ferro em brasa. Uma maneira de me pôr fora das fontes de financiamento. Faço cinema por necessidade, é quase patológico... Não me sinto assim tão indesejado, não quero ser arrogante, mas nunca fiz cinema para o público. Os meus filmes foram feitos para mim no sentido mais evidente, logo fazer filme para o público é algo que nunca imaginei possível. Mas mesmo colocado fora disso, inventei maneiras de fazer filmes com o que tinha. ”
Essas maneiras de inventar surgiram primeiro na experiência fugaz da produtora Belair, que fundou com Rogério Sganzerla em 1970 – sete filmes rodados “a quente” e quase sem orçamento durante menos de seis meses, que foram proibidos pela censura brasileira – e, constantes ao longo de toda a sua produção, ressurgem de modo mais articulado agora na Tela Brilhadora, designação que foi retirada à primeira tradução para português da Eneida de Virgílio, feita por João Franco Barreto no século XVII.
“Não é um programa, não é um movimento, foi a partilha de um estado de espírito, de um momento,” declara sobre os quatro filmes parcialmente financiados pelo Canal Brasil, dirigidos por Bressane, Bruno Safadi (O Prefeito), Moa Batsow (Origem do Mundo) e Rodrigo Lima (O Espelho, adaptando um conto de Machado de Assis). Todos eles são colaboradores regulares de Bressane por trás da câmara – Safadi co-dirigiu igualmente um documentário sobre a Belair em 2011 - mas Batsow e Lima fazem aqui a sua estreia na realização.
“São pessoas com a metade da minha idade que trabalham comigo há mais de 15 anos, fizeram dez, 12, 15 longas-metragens comigo,” diz Bressane, “e são pessoas que partilham como eu partilho. O nosso projecto foi justamente esse, fazer uma coisa de individualismo colectivo. É uma ideia partilhada, uma energia comum, recuperando uma ideia presente desde o início do cinema, que é o produtor/realizador – Lumiére, Griffith, Méliès, produtores que também realizavam e sabiam o que queriam, que tinham o controlo da imagem. Inventámos quatro filmes que ficaram a contracorrente, a contra-pulso. São filmes locais com uma aderência ao solo brasileiro, solo e pensamento está ali, junto com história, literatura, geografia... Contêm muita coisa que não está nos pratos do dia.”
Bressane está a falar dos quatro filmes da Tela Brilhadora, mas podia estar a falar do cinema mais interessante que vem hoje do Brasil, invocando o conceito pessoano do “nacionalismo cosmopolita” - um cinema ao mesmo tempo local, ancorado num território específico, mas que ao mesmo tempo é universal e abrangente. E que, muitas vezes, se “desenrasca” como pode, apesar do sistema de financiamento público que subjaz à maioria da produção brasileira contemporânea.
Locarno tem esse lado de propor “pratos do dia” na Piazza Grande juntamente com “cozinha de autor” nas restantes secções, e este ano o Brasil teve um pé em cada uma – significativo do crescente estatuto da cinematografia local no circuito de festivais internacionais.