Cecil e o argumento estalinista

A tragédia individual faz-nos isso: coloca-nos defronte de um espelho; coloca-nos frente a frente com a nossa própria vulnerabilidade

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AFP

Notícias recentes dão-nos conta da morte de um leão. Adenda: do assassinato de um leão; não fosse este aparentemente o menos anónimo dos felinos à escala global.

Dou a mão à palmatória e confesso a minha ignorância: não fazia ideia de quem era Cecil até dar de caras com redes sociais inflamadas. De um lado, elevam-se os acérrimos defensores da vida, em toda a forma e sentido, em mais ou menos profunda revolta contra um, também outrora anónimo, dentista norte-americano, que faz da caça desporto, orgulhosamente. Do outro, os cavaleiros brancos, peritos na metáfora comparativa, quase óbvia: "Todos os dias morrem centenas de crianças na Síria". Estes últimos não lavram grande atenção mediática.

Remete-me para Estaline: "A morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística". Não sei quando nem onde formulou este maravilhoso aforismo moderno, mas gosto de imaginar que o tenha feito sozinho, em frente a um espelho.

A tragédia individual faz-nos isso: coloca-nos defronte de um espelho; coloca-nos frente a frente com a nossa própria vulnerabilidade. Apreendendo a fragilidade alheia, apreendemos a nossa própria fragilidade e, à boa maneira freudiana, negamos o medo e optamos pela indignação. Mas isso não chega, até porque a nossa indignação pessoal não é digna de nota, e criamos movimentos, grupos, massas disformes contra isto e aquilo, exigindo aqueloutro, sempre sob a capa das mais nobres causas e à mercê do ativismo frouxo do Facebook.

Escolhi apenas agora escrever sob o tema, já passaram umas semanas. A cambada amainou o fervor e o medo diluiu-se novamente.

Em retrospectiva sobra-nos isto: um leão morreu há umas semanas, consta que morrem cerca de 600 por ano. Entretanto, já morreram mais de 12 mil crianças na Síria.

Duas semanas depois, a sangue frio, só se distingue tragédia de tragédia maior.

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