Quem corre por gosto ouve um certo tipo de música
Em que é que pensa quando pratica running? Ou, se não tiver prestígio suficiente para isso, em que é que pensa quando corre? Há quem goste de organizar a agenda diária e pensar sobre projectos profissionais. Há quem prefira ouvir o bater do seu coração, a cadência dos passos, o ritmo da respiração, e sincronizar tudo com o pulsar da energia visceral da natureza.
Também há quem reflicta sobre o sabor da sua barra energética feita em casa, com bagas goji, sementes de gerberas, pó de fada e spirulina, tirando partido de cada mastigadela, como os corredores do paleolítico faziam, quando papavam as suas barras energéticas.
Ou quem medite sobre o melhor sítio para tirar a selfie de fim de treino, com mar ao fundo e legendada: “Hoje foram só 56 km, porque só tinha 2 horas e ainda me ressinto da banda iliotibial”.
Era assim que ocupava a minha cabeça enquanto corria. Até ter sido quase atropelado por uma autocaravana cheia de surfistas suíços que se jogou para cima de mim na Estrada Nacional 247. Provavelmente, eu estava a sincronizar-me tão bem com a natureza que me confundiram com um daqueles arbustos que enfeitam as bermas da estrada e acharam bem tentar estacionar em cima do meu corpo.
Desde esse dia, não consigo pensar em mais nada senão nos avisos da minha avó sobre não sair de casa sem vestir cuecas lavadas, não vá ter um acidente e os bombeiros verem-me de cuecas sujas. É um lugar-comum repetido por todos os idosos. É que os idosos preocupam-se muito mais com o asseio do que com a integridade de ossos, talvez por estarem numa idade em que, mais do que não cair, o grande desafio é alcançar certos sítios durante a higiene diária.
Só que, é sabido, não devemos voltar ao lugar-comum onde já fomos felizes, de maneira que o meu medo não tem que ver com roupa interior (que não uso quando corro, preferindo as confortáveis embora pouco prestigiantes licras) mas com música.
A partir do momento em que quase fui abalroado e me imaginei a ser acudido pelo INEM, só imagino no que vão pensar os socorristas quando, recolhendo os meus pertences, perceberem que a minha playlist de corrida é composta exclusivamente pelos Grandes Êxitos das Destiny’s Child.
É por isso que agora corro com o iPhone na mão direita, para o poder lançar mais longe no momento em que vir que vou esbarrar com uma viatura. Isso, claro, enquanto a Apple não parar de actualizar semanalmente o IOS para se dedicar a melhoramentos realmente imprescindíveis, como um mecanismo que, no impacto, apague instantaneamente a lista de músicas que está a tocar e a substitua por uma com grandes clássicos do rock cheio de testosterona como Eye of the tiger dos Survivor, Tunderstuck e You shook me all night long dos AC/DC ou Here I go again dos Whitesnake. Alguma coisa que leve o polícia responsável pela ocorrência a escrever no relatório: “o acidentado circulava pela berma enquanto ouvia uma lista de temas poderosos e másculos, daqueles que arrepiam os pêlos da nuca e fazem o atleta superar-se. Não ouvia mariquices que, sendo agradáveis ao ouvido, atrasam o passo, tipo Say my name, Independent Women ou Emotions, uma versão de um tema dos Bee Gees que consegue a proeza de ser superior ao original. Avaliando o pouco prestígio conferido pela licra que vestia, praticava corrida e não running.”