Ana Tijoux quer uma revolução, não um slogan publicitário
Finalmente estreada em palcos portugueses, Ana Tijoux levou a Sines uma música que recusa a apatia. Para a rapper chilena, símbolo dos protestos estudantis, a arte desligada do mundo não passa de publicidade.
“Agora, em adulta”, confessa a rapper ao Ípsilon de passagem pelo Festival Músicas do Mundo, em Sines, “penso que isso explica muito quem sou”. Na altura, embora percebesse que o jogo não correspondia exactamente ao seu pedido, espantou-se que nenhum dos colegas da escola que frequentava em França se tivesse interessado pelo seu Monopólio adulterado. Jogou apenas com o pai, cientista político (a mãe é socióloga), que começava, talvez ignorando o alcance de tal gesto, a prepará-la para uma vida fortemente politizada e contestatária. “Se me tivesse calhado ter um pai violinista ou luthier, ter-me-ia possivelmente fascinado pelo violino, pelas madeiras ou pelos métodos de construção”, comenta. “Mas fui formada por dois pais muito politizados e, por isso, fascinam-me a política, a História da América Latina. Acho que nos fascinamos sobretudo por temas com os quais convivemos desde cedo, a menos que se tenha um trauma com isso – mas eu não tenho nenhum trauma.”
Mesmo sem traumas, Ana Tijoux só conheceu verdadeiramente o seu país (nasceu em Lille, França, em 1977) após a saída de cena de Pinochet, em 1989, confrontando-se então com a visão fantasiosa do Chile que construíra à distância. “Pensava que todo o Chile estaria levantado, lutando; imaginava também um país cheio de afro-chilenos, muito caribenho, e claro que o Chile não tem nada que ver com o Caribe, é um país muito nostálgico, de muita poesia, muito alongado geograficamente e com esta característica de movimentos sísmicos.” Tijoux gosta, aliás, de comparar esses movimentos sísmicos aos movimentos sociais que tomam conta das ruas e abanam as estruturas do país de uma outra forma. Mas, afinal, foi um país mais apático que encontrou, o que acabaria por intrigá-la e seduzi-la talvez ainda mais do que se a sua fantasia se tivesse assemelhando minimamente à realidade.
“As pessoas sobreviveram à ditadura com um grande peso nos ombros, até na forma de vestir e na música que escutavam”, lembra. “Esse peso custou-me. Mas apaixonei-me por ele e por isso fiquei no Chile, não voltei para França. Estou ainda apaixonada por essa contradição e esse paradoxo que é o Chile, continuo apaixonadíssima por essa nostalgia.”
O hip-hop como pátria
Quando Ana Tijoux se mudou em definitivo para o Chile, a única pátria que conhecia era o hip-hop. Crescida no meio de outros filhos de imigrantes de primeira, segunda ou mesmo terceira geração, era esse o seu mundo em França, longe de qualquer sentimento de plena integração. Era uma espécie de existência a prazo, à espera que a terra dos seus pais se livrasse da ditadura para receber de volta os filhos que cuspira para longe. “No meu bairro e em muitos outros bairros deste mundo onde se concentram pessoas que, por uma qualquer razão, fugiram da sua terra, o hip-hop foi o nosso país”, afirma. “Nunca me senti francesa nem tão-pouco chilena – nunca tinha sequer ido ao Chile. Agora, olhando para trás, percebo que o hip-hop cumpriu esse papel de terra dos desterrados. Acho que é por isso que tantos migrantes se ligam a essa música, que acolhe o desconforto.” A sua atracção pelo hip-hop, identifica sem hesitações, fez-se primeiramente “pela raiva”.
Após um interesse pelas narrativas cantadas, descoberto ao ouvir Construção, de Chico Buarque, a formação de Ana Tijoux como rapper começou pelos franceses NTM e IAM, avançando depois para o rap norte-americano de Public Enemy e NWA. Mas a sua chegada ao Chile coincidiu com uma explosão do rap latino-americano e espanhol, pelo que, de repente, passava a ter todo um novo mundo de referências, proveniente de várias geografias com as quais conseguia facilmente contactar através da língua comum. E a semelhança das experiências (até mesmo em relação ao Brasil) com ditaduras e regimes opressivos provava-lhe a inevitabilidade de um domínio total da língua.
Foi também com recurso à música que Ana Tijoux começou a questionar-se a si e à sua geração. A tal geração que não reconheceu na sua concepção fantasista do Chile. Uma geração “filha da ditadura”, mas rapidamente tragada pela velocidade da transição para a democracia. “Muitos filhos de exilados, como eu, chegaram ao Chile e foram parte da transição, venderam-se à transição.” Ou seja, participaram activamente no restabelecimento de uma democracia de que Ana Tijoux é extremamente crítica. Se “o neoliberalismo e o capitalismo se instalaram com a ditadura”, acusa, a transição não apenas seguiu essas coordenadas como as exacerbou. “Toda a gente achava que em 1989, com a democracia, se voltaria a escrever a Constituição, se voltaria aos plebiscitos, à Assembleia Constituinte e à saúde pública, e não se passou nada”, refere, sem disfarçar a desilusão com um processo que, nas suas palavras, teve o condão de tirar o tapete do poder a Pinochet, mas se esqueceu de varrer realmente a herança desses 17 anos passados desde o golpe militar que levou à morte do Presidente Salvador Allende. Como se a mudança para a democracia, por mero milagre formal, transformasse o Chile automaticamente.
O exemplo de Naomi Klein
Não espanta por isso que o tema mais marcante da carreira de Ana Tijoux até ao momento, Shock, tenha estado tão ligado às revoltas estudantis que, em 2011, reclamavam o acesso gratuito e universal ao ensino no Chile. “Esta nova geração vem com outro chip”, elogia. “Claro que sempre houve gente sem medo em todas as gerações, mas esta gente mais nova tem um fulgor que a minha geração não tem.” As realidades a que Tijoux se refere, de deposição de uma ditadura para instalação de uma outra, “mais amável e por isso mais perigosa”, de governos subjugados por corporações, não são porém um exclusivo chileno. E uma das suas grandes ameaças passa pela capacidade de este sistema “muito publicitário” conseguir integrar tudo no seu discurso. “É um progressismo que faz logótipos a partir das vítimas da ditadura, transforma os direitos humanos num museu”, assusta-se. “Sei que me odeiam sempre que digo isto, mas quando se faz da ditadura um capital para conseguir votos sem fazer mudanças reais e de raiz, então a vitimização e o choro não servem de nada. E depois vem toda esta gente progressista que nos fala de um capitalismo justo, como se o capitalismo alguma vez pudesse vir a ser justo.”
Em vez de justo, lembra Tijoux, é antes perverso no aproveitamento e na anulação das armas brandidas contra si. É por isso que a rapper confessa o receio constante de ser transformada em marketing, de a sua revolução se tornar um slogan publicitário. Foi o que viu acontecer com as palavras de ordem dos protestos estudantis – que não tardaram a saltar dos rudimentares cartazes pintados à mão que desfilavam na rua para os gigantescos telões de publicidade a marcas de telecomunicações ou de café. “Não sei se a minha voz é incómoda ou se é transformada em marketing”, desabafa. “Só o posso contrariar matando-me permanentemente. O importante na arte é matarmo-nos para renascermos, não nos deixarmos tornar estátuas. O problema é quando nos transformamos noutra igreja.” Ana só acredita, por isso, em arte implicada, que tome posições. “Qualquer arte que esteja desligada da realidade do seu país parece-me logo mais publicidade do que arte.”
Esta consciência vem-lhe, em parte, da leitura de Naomi Klein, autora de No Logo, e cujo The Shock Doctrine inspirou o refrão de Shock. O livro revelou-se fundamental para a rapper ao descrever “o laboratório que o Chile foi em termos políticos”, acredita, “não somente em termos das políticas de privatização mas também de congelamento pelo medo, pela repressão e pela tortura.” Shock faz parte de La Bala, álbum de 2011 em que Tijoux se apresentava com um discurso mais virulento e contundente contra o capitalismo, claro, mas também contra várias formas de violência e de repressão no Chile. Dois anos antes, lançara 1977, disco de carga fortemente autobiográfica que a impôs na cena local. Em 2014, seguiu-se Vengo, cuja digressão a trouxe agora a Sines.
A força motriz de Vengo é fácil de identificar. Após várias investidas em território norte-americano, onde a sua popularidade galopou nos últimos anos, Ana Tijoux começou a olhar para os seus amigos afro-americanos e a perceber neles uma cultura “muito em contacto com o jazz, os blues, o be bop, etc”. “Admiramo-nos com a cultura deles, que é muito bonita, mas o que somos nós dentro desta linguagem hip-hop e dentro da nossa própria cultura?”, perguntou-se. Decidiu então preparar o terreno para não repetir os habituais samples de Miles Davis ou Herbie Hancock que povoam todo o hip-hop mundial e investiu a sério na riquíssima biblioteca musical da América Latina. É esse o lugar de Vengo, quer Tijoux esteja a encadear rimas sobre a sua identidade, a recusa em calar a sua voz, a sua inscrição numa defesa de povos subjugados por outros (e que inclui o acolhimento da rapper palestianina Shadia Mansour) ou o peso esmagador de uma sociedade patriarcal.
Repudiando o chauvinismo ou o nacionalismo barato, Tijoux reivindica sobretudo a identidade. Uma identidade que, aos poucos, percebeu ter como figura fundamental o cantautor Victor Jara. “Tenho amigos de todo o tipo, que escutam metal, folclore, hip-hop ou jazz, e a música que nos toca a todos é a de Victor Jara e de outros compositores folclóricos. Dei-me conta de que é isso que nos une. Porque é música que escutámos em crianças, faz parte do nosso legado histórico e biográfico.”
Com Ana Tijoux, tudo começa em casa. Na educação que a formou e que se tornou bandeira para o seu rap em defesa da justiça social.