O “nervosismo” dos Deerhoof e os xamãs HHY & The Macumbas conquistam o Milhões de Festa
Do garage-rock para o indie à antiga, daí para psicadelismo, daí para hip hop, rituais xamãs ou rock em ebulição. Exploração e descoberta, eis o Milhões de Festa no seu primeiro dia oficial. Destaque para os Deerhoof e para HHY & The Macumbas.
A “banda” era o computador que fornecia os instrumentais do hip hop alienígena e multiforme, qual A Tribe Called Quest da idade espacial, das THEESatisfaction. A partir daí, e até que a “banda” renascesse na última canção do concerto, continuaram em modo a capella, momento inesperado que acabou por se tornar uma demonstração entusiasmante da essência desta música.
Portanto, saltámos do rock fervorsamente psicadélico para o hip hop como centrifugadora de tempos e estéticas. Saímos daí para um combo magnífico chamado HHY & The Macumbas, mestres do voodoo e do dub reunidos por Jonathan Saldanha, feiticeiros recolocando o “witches” no Bitches Brew, o de Miles Davis, num cerimonial de música enquanto experiência apontando à transcendência - o tempo é agora, o ritual é intemporal. E depois deles, a levitar enquanto atravessávamos os caminhos do Parque Fluvial de Barcelos para chegar ao palco Milhões, fomos chocalhados e chicoteados pelo estremecimento rock dos magníficos Deerhoof, criadores de canções montadas em micro-partículas que se reorganizam constantemente em novas combinações.
Na noite anterior, quinta-feira, o público fora recebido em Barcelos com a festa popular no palco Taina, rio Cávado lá em baixo, os mil verdes de Minho à nossa frente, petiscos e vinho branco preparados para ser servidos, e os Riding Pânico, a banda residente do Milhões de Festa, totalista de todas as edições, a protagonizar outro tipo de festa em palco. Sexta-feira, o festival arrancou oficialmente. As piscinas municipais encheram-se de gente e de bóias cor-de-rosa flutuando enquanto os TOCHAPESTANA nos faziam pedidos impossíveis, dada a geografia, mas adequados, dada a natureza da música, que é glam-arraial e synth-pop(ular): “Vem comigo junto ao mar”.
Gonçalo Tocha mudou de fatiota um par de vezes, fez solos de caixa de ritmos na pélvis, cantou o Cais do Sodré e o Macho masoquista e despediu-se com chuva de confetti. Depois, a piscina, a meio da tarde, ganhou som de after-hours pós madrugada, com o chileno Matias Aguayo, e do outro lado da cidade o trio Hichpop trouxe baixo, bateria e um saxofone de som transformado ao crepúsculo no palco Taina. As gentes do festival comeram ali o rancho que saía do panelão, ou deambularam por Barcelos para encontrar outros ranchos noutros restaurantes, e reuniram-se todos mais tarde para aproveitar esse mundo todo que o Milhões de Festa oferece.
Este ano, o Parque Fluvial, a zona nobre do festival, onde decorre a acção nocturna, ganhou zona lounge a céu aberto, com puffs disponíveis para uns minutos de relaxamento, um par de mesas de matraquilhos para diversão extra-musical e uma zona de restauração melhorada. Esses são os pormenores organizativos que se alteraram relativamente às edições anteriores. Aquilo que é o espírito do festival, o prazer da descoberta e a fruição de músicas sem fronteiras estéticas e sem hierarquias de gosto, manteve-se inalterado.
Os All We Are, que se estrearam este ano com um álbum homónimo, trouxeram recolhimento indie, no sentido original do termo (no sentido 4AD, a editora cuja personalidade sonora parece influência decisiva para o trio), para dar sequência ao garage-rock clássico-moderno dos americanos Tijuana Panthers. O trio nascido em Liverpool, mas formado por um brasileiro, um irlandês e uma norueguesa, mostrou canções como Feel safe ou Keep me alive, homenageou os Caribou de Dan Snaith com uma versão de Can’t do without you, e, com falsete bem afinado sobre uma versão actualizada da soul acetinada dos anos 1980, com a guitarra a reverberar, metálica, como no pós-punk de outrora, mostraram-se como que uns The xx com nervo. Mostraram-se também extremamente felizes por estarem naquele palco, nesta cidade, e agradeceram à organização “por ter juntado tantos músicos fantásticos num mesmo espaço”. Tinham razão. E o que veio depois do concerto dos All We Are, agradável sem deslumbrar, comprovou-o.
Os escoceses Cosmic Dead não deixaram pedra sobre pedra. O som saturado, criado com sintetizadores, uma guitarra indistinguível do ruído sintetizado e um baixo distorcido em batimento cardíaco unido à bateria, tem correspondência no que os nossos olhos vêem: cabelos compridos e longas barbas, as do baixista e guitarrista, rodopiando sem cessar, até não percebermos onde acaba o cabelo e começam as barbas; um vocalista que canta como agitador em púlpito de comício (sob a camada de efeitos, não percebemos o que diz, mas isso, neste contexto, é secundário). Cada canção é menos uma canção e mais uma longa descarga de ruído eléctrico que tritura memórias krautrock numa betoneira stoner (isto é um elogio). Um trago prolongado na garrafa que passa de mão em mão em palco, o vermelho vivo das luzes a acentuar a incandescência da música e esta a silenciar-se abruptamente quando guitarrista e baixista erguem os instrumentos sobre a cabeça para que se reconheça e se aplauda o prazer que nos dão a todos.
As muito aguardadas THEESatisfaction não provocaram o mesmo efeito. A música de Awe Naturale e de Earthee, os dois álbuns da dupla Stasia Irons e Catherine Harris White, é de uma riqueza invulgar, mas no palco do Milhões, talvez pelo volume sonoro demasiado baixo para que a música nos atingisse com a eficácia necessária, não se revelou como desejado. Claro que é um prazer assistir às micro coreografias do duo e ouvir como as duas vozes se complementam e bailam sobre as canções onde cabe a era dourada do hip hop, o funk sintético de Prince ou o balanço do jazz afrocêntico da década de 1970, mas parecia faltar algo à música criada no palco principal do Milhões de Festa. Talvez por isso tenha sido tão surpreendentemente refrescante, quase comovente, vê-las superar a falha tecnológica recorrendo a nada mais que as suas duas vozes, o centro, afinal, de onde emana toda a música das THEESatisfaction. Para revelações, teríamos que esperar pelo momento seguinte, o do magnífico concerto dos HHY & The Macumbas, grandioso combo jazz (mas não propriamente), dub mas não o confundamos com criação jamaicana, experiência xamânica, certamente, mas de origem difusa.
Há trompetes lançando o seu sopro sobre as barreiras de percussão, há electrónica a criar o fundo sonoro sobre o qual toda a música se desenvolve. Não há guitarras, mas quem precisa de guitarras quando atravessamos estes crescendo lentos, orgânicos, conduzidos pelo feiticeiro-maestro no centro do palco, homem dos chocalhos e das maracas, de costas para o público, mas encarando-nos sempre, porque tem uma máscara na nuca que nos olha fixamente como personagem de ritual ancestral? Os HHY & The Macumbas foram a descoberta de sexta-feira no Milhões – já contamos o tempo que falta para o próximo concerto.
Para além deles, o dia foi dos Deerhoof. A banda americana é uma preciosidade. Não existe banda assim, literalmente. Criam música convulsiva, de uma dinâmica extenuante, criada a partir da união de diversos contrastes: a voz doce, quase infantil, da vocalista e baixista, Satomi Matsuzaki, contraposta ao ataque dos guitarristas John Dieterich e Ed Rodriguez, contraposta à sofreguidão do inacreditavelmente talentoso baterista Greg Saunier, que comanda a banda com autoridade, incapaz, por defeito, de se manter no mesmo registo mais que um par de compassos. “A última vez que viemos a Portugal tínhamos 43 pessoas na assistência. Agora são bem mais, talvez 49”, brincou. “Tem sido um dia perfeito em Barcelos. Podemos parecer muito calmos em palco, mas estamos muito nervosos”, acrescentou. A verdade é que, não, não pareciam nada calmos. Foram “nervosos”, não por exibirem sinais evidentes de ansiedade, não por tocarem de forma trôpega canções como The perfect me, de Deerhoof vs. Evil, Exit only, do último La Isla Bonita, ou Panda Panda Panda, de Apple O’. Precisamente o contrário.
Enquanto o furacão Greg Saunier dançava em espasmos sobre os pratos, tarola e timbalão, enquanto Satomi Matsuzaki acompanhava a música de coreografias de desenho animado, a música dos Deerhoof revelava-se: melting pot de rock acelerado e de desconstrução vanguardista, de pop muito gentil que logo cairá em turbilhão noise - consegue a proeza de ser incrivelmente complexa e, ao mesmo, estranhamente fluída. Não, ninguém faz música assim. Os Deerhoof são um mundo em si mesmos. Ideais, portanto, para assumirem o papel de cabeças de cartaz num festival como o Milhões de Festa. Não tinham razão para estarem nervosos com a responsabilidade. Foram a banda certa no sítio certo.
Este sábado, o Milhões de Festa recebe Michael Rother, histórico do krautrock que nos mostrará o legado que vem construindo desde os anos 1970 nos Neu!, nos Harmonia ou a solo. Islam Chipsy, cuja actuação estava a gerar bastante curiosidade, viu o seu concerto cancelado, anunciou a organização do festival, por complicações com o voo que o traria a Portugal. O Milhões de Festa termina domingo com concertos dos Meridian Brothers, The Bug, Clairo Liberation Front ou Medeiros/Lucas.