Michael Rother: Nuvens coloridas sobre uma máquina poderosa

Com os Neu! e com os Harmonia, criou um novo mundo. Influenciou o pós-punk que se se lhe seguiu e o rock psicadélico de hoje. Tornou-se referência incontornável da música electrónica. O objectivo era apenas um: criar uma linguagem única. Encontremo-la no Milhões de Festa e na Galeria Zé dos Bois

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Membro inicial dos Kraftwerk, dos quais saiu para fundar os Neu! (“Novo!”, com ponto de exclamação para acentuar ao que vinham), que, por sua vez, abandonou durante uma pausa em retiro campestre para criar os Harmonia (o nome diz muito da placidez ambiental desta música, sonhadora, misteriosa, optimista), Michael Rother é um privilegiado.

Ouvimos Halogallo, primeira canção do primeiro álbum dos Neu! (1972), ouvimos Musik von Harmonia (1974) e torna-se evidente. Dos chilenos Föllakzoid aos portugueses 10000 Russos, dos americanos Ratatat e Oneothrix Point Never, em todos encontramos a marca da sua identidade. Olhando para trás, surge uma distinta galeria de admiradores: David Bowie, Brian Eno, colaborador dos Harmonia, os PiL, Iggy Pop, Julian Cope, os Stereolab, os Air, os Death In Vegas ou os Negativland, baptizados com o título de uma canção dos Neu!.

Michael Rother conseguiu a rara proeza de criar música totalmente original, incrivelmente influente. Estreia-se em Portugal amanhã, no Milhões de Festa. Segunda, tocará em Lisboa, na Galeria Zé dos Bois (22h, 15€). Klaus Dinger, o seu tumultuoso companheiro nos Neu!, foi levado por um ataque cardíaco em 2008. Uma semana depois de Michael Rother, desde Hamburgo, nos contar que estava desejoso de mostrar em Portugal Flammende Herzen, tema título do seu primeiro álbum a solo, editado em 1978, e que diz ter sido um inesperado sucesso de vendas por cá, caiu-nos em cima a inesperada notícia da morte de Dieter Moebius, aos 71 anos. Em 1973, com o seu parceiro nos Cluster, Hans-Joachim Roedelius, e com Rother, formara os Harmonia. Os concertos portugueses serão para ele, um dos exploradores visionários que, como Michael Rother, abriram novos horizontes para a música. Ainda estamos a aproveitar essa visão.

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Hallogallo Neu!, 1972
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Dino Harmonia, 1974

Os Neu! eram formados por dois músicos com personalidades muito diferentes. De um lado, o excessivo e tumultuoso Klaus Dinger, do outro, o Michael, sereno, procurando harmonia com o mundo em volta. É a tensão entre esses dois temperamentos que explica a raridade da música dos Neu!?
A análise psicológica de músicos é sempre interessante e tem razão quanto às diferenças básicas de temperamento entre mim e o Klaus Dinger, mas, ainda que fossemos o oposto um do outro sob tantos aspectos, tínhamos uma visão comum. Eu gostava do poder da música de Klaus Dinger tanto quanto ele gostava das minhas adições melódicas e harmónicas. Éramos uma equipa, tínhamos elementos diferentes com que contribuir e isso era aceite e valorizado por ambos. Não se tratava de uma luta perante as linhas de guitarra em “Hallogalo”, aquelas nuvens coloridas sobre uma máquina poderosa. Mesmo o “Neu! 75” [lado A composto por ideias trazidas por Rother, lado B impulsionado por Dinger] foi alvo de interpretações erradas. Não resultou de uma batalha entre mim e o Klaus, como se diz. Eu gostei de tocar guitarra em “Hero” tanto quanto o Klaus gostou de tocar bateria em “Seenland”. A diferença é que nessa altura o Klaus estava muito frustrado com a sua vida. Eu não sentia aquela raiva, mas enquanto expressão artística, admirei a performance dele.

Pegou numa guitarra por causa da explosão rock e pop da década de 1960, mas rapidamente virou costas a esse fascínio, ignorando-o totalmente, para perseguir uma visão musical individual. O que motivou uma decisão radical como essa?
Não tinha outra hipótese. Se quisesse ser feliz, tinha que perseguir esta vontade de fazer qualquer coisa diferente, aceitando a hipótese de ser rejeitado. Isso aconteceu especialmente com os Harmonia, que foram um falhanço tão grande. É o preço que pagas por seres livre e por escolheres ser diferente. Estava totalmente fascinado pela pop e pelo rock quando era adolescente. Comecei a tocar guitarra numa banda e copiava esses heróis, como os Beatles ou Jimi Hendrix. Gradualmente, comecei a perceber que copiar não era suficiente. Tinha que ter uma linguagem e uma identidade musical. Por sorte, encontrei os Kraftwerk. Foram os primeiros com quem pude trocar ideias que não eram baseados no blues, que era a linguagem que estava em todo o lado na altura. Claro que não tinha um grande plano. O objectivo era evitar qualquer eco da música que nos rodeasse e fugir das estruturas complexas que, anos antes, tinham definido o que era um músico. Em vez disso, concentrámo-nos em elementos minimais, muito simples. O ponto-chave é 1971, quando faço a minha primeira gravação dos Neu! com o [produtor] Conny Plank. Não se pode imaginar Neu!, Harmonia ou o meu trabalho a solo sem Conny Plank. Como é que ele conseguiu criar aqueles sons com quase nada? Não tinha mais que uma câmara de reverb e uma máquina de delay. A forma como organizava os elementos nas sessões de mistura era génio puro.

Conhecendo a história, como a conhecemos hoje, percebemos que a cena musical alemã a que hoje se chama krautrock, onde incluímos os Can, os Neu!, os Harmonia, os Guru Guru, os Faust ou os Kraftwerk era, na verdade, minúscula. A sua influência foi imensa, mas eram pequenas bolsas de criatividade “perdidas” num país muito grande.
Acho que em Düsseldorf existiam apenas os Kraftwerk. Para além deles e do Klaus Dinger, era difícil encontrar uma pessoa sequer em quem me interessasse musicalmente. Sentia-me muito sozinho. Mas um dia, em vez de ir para casa ter com a minha namorada, decidi aceitar o convite deste guitarrista [Florian Schneider, fundador dos Kraftwerk] para tocar música com a sua banda de nome estranho, que achei tão engraçado e tão bizarro. Tive muita sorte quando decidi juntar-me a eles, porque o número de pessoas interessadas [naquela abordagem musical] era mesmo pequeno. Conheci os Can quando toquei num concerto com eles e com os Kraftwerk. Também era música estranha e diferente da americana mas, para dizer a verdade, não prestei muita atenção, porque divergia do que eu queria fazer. Se olharmos para bandas do tempo, como os Black Sabbath ou os Deep Purple, e depois para os Can e para os Neu!, claro que os Can e os Neu! pareciam muito próximos, porque tinham um horizonte partilhado. Apesar disso, todas essas bandas tinham diferentes visões para a sua música. No meu caso, isso também está relacionado com ter deixado de ouvir música, de forma a me concentrar no que queria atingir. Os tempos modernos têm vantagens, claro. Temos a tecnologia que nos permite ver e ouvir tudo o que se passa do mundo. Mas um dos problemas é que se torna muito difícil afastar-nos. Há tanta informação à nossa volta. Naqueles tempos, não havia nada. Era fácil fechar os olhos, tapar ouvidos e deixar de ouvir Roxy Music ou Brian Eno. Se bem me lembro, na cozinha dos Harmonia era só isso que ouvíamos. Isso e Moondog, que também era ali muito popular. Para além deles, tentava afastar-me de tudo.

Ao lê-lo em entrevistas, principalmente mais recentes, fico com a sensação que sente os Harmonia mais próximos do que os Neu!. Aquele som ambiental, exploratória mas elegante, reflexiva, está mais próxima da música que procurava para si?
Não distinguiria os Harmonia dos Neu!, porque são igualmente importantes para mim, mas no tempos do Harmonia vivíamos juntos no campo. Não tínhamos o stress do estúdio de gravação, como com os Neu! - tinha sempre o relógio do estúdio a fazer tique-taque no meu subconsciente. Com os Harmonia limitávamo-nos a tocar. Horas e horas de música. Era muito mais relaxado. Outro aspecto que me faz focar nos Harmonia, surpreendentemente mais que nos Neu!, é o facto de a música não ter sido compreendida. Estou muito feliz por isso ter mudado.

Falar dos Neu! é falar do ritmo a que chamamos motorika. Brian Eno disse um dia que, a par do afrobeat de Fela Kuti e do funk de James Brown, a motorika foi “o” ritmo dos anos 1970. Não nasceu certamente por geração espontânea. Teve existir pensamento, reflexão, na ideia de unir a batida minimal às iluminações da sua guitarra.
O Klaus era um baterista poderoso e impressionante e quem o viu em concerto sabe-o. Toda a gente ficava tão impressionada com ele. Não era um baterista tecnicamente evoluído. Se pensarmos no Jaki Liebezeit [baterista dos Can], temos a precisão, temos alguém que pertencia ao domínio da arte quando tocava bateria. O Klaus, tal como eu, não teve formação clássica no instrumento. Tomámos a decisão de sermos o mais simples possível. Aquela batida firme, contínua, já existia em diferentes formatos – se ouvir os Canned Heat ou os Velvet Underground, irá descobri-la -, mas o Klaus tinha uma grande qualidade. Tinha um vigor extraordinário enquanto baterista, mas não se limitava à bateria. Enquanto tocava, estava concentrado na visão global da música. Era isso que tínhamos em comum.

O seu trabalho consistia em, através de experiência e erro, explorar as camadas de guitarra que poderia oferecer à música? Errando até acertar melhor, até que o erro fosse o correcto?
Tem que ter presente que no estúdio tínhamos sempre o cronómetro a contar e não havia muito tempo para nos sentarmos a pensar se aquele pormenor era um erro, se tinha que gravar diferente a seguir. Talvez as ideias já estivessem no meu sistema sem que eu o percebesse. Não era um processo intelectual. O trabalho de estúdio assemelhava-se a “action painting”. Dois pintores trabalhando a mesma tela ao mesmo tempo. Eu e o Klaus nunca teorizámos sobre a música. Isso não nos interessava, éramos músicos instintivos. Uma melodia como a de Weissense, do primeiro álbum [dos Neu!], apareceu sem qualquer correcção. Só a toquei uma vez. Que é o que ainda hoje faço, sempre que tenho oportunidade, deixando alguns erros na gravação, alguns problemas com o ritmo. É isso que dá sabor e identidade à música.

Diz que quando não consegue exprimir exactamente aquilo que deseja se sente muito frustrado. Diz também que essa incapacidade surge sempre por problemas técnicos. Nesse sentido, imagino que hoje, com as possibilidades tecnológicas disponíveis, sinta que é muito mais fácil escapar a essa frustração.
Não podemos comparar os anos 1970 à actualidade, de todo. Nos anos 1970, ficava feliz quando conseguia dar um bom concerto com os Harmonia. Com os Neu! não tínhamos a possibilidade de dar bons concertos. Era só eu na guitarra e o Klaus na bateria. Não havia música suficiente, não havia detalhe suficiente no som. Sinto-me muito feliz por existir hoje a tecnologia que me permite apresentar a música com todos os detalhes que são importantes para mim. Tenho levado a minha música à China, ao Japão, à Austrália e a muitos outros países. Têm sido tempos magníficos. 

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