A caminho da União Orçamental ou do declínio europeu?
O que esta crise infelizmente introduziu, e inovou, foi a litigância, latente por enquanto, entre países europeus, em que predominou a decisão do mais forte.
Na realidade, se pensarmos naquilo que simbólica ou praticamente confere uma noção de cidadania encontramos pouca coisa: a bandeira só está presente em instituições oficiais, e o logotipo está naquelas instituições que recebem fundos europeus (porque é obrigatório), mas não está em casa de “cidadãos” ou em organizações da sociedade civil dos países membros. Depois temos o uso de uma moeda comum — o euro — mas que apenas inclui parte dos países da UE. Este é talvez o símbolo mais forte da identidade europeia que toca os cidadãos da zona euro. Finalmente, temos regras (espaço Schengen) ou programas (Erasmus), que facilitam a mobilidade no espaço europeu, ainda que parcialmente, e que dão alguma ideia, aos que efetivamente circulam nesse espaço, que habitam não apenas num território mas numa mesma comunidade. Para assumir a cidadania de facto, é muito pouco ter apenas uma moeda e mobilidade territorial. Linguisticamente falando, seremos sempre diversos. Isto não é, em si, um problema. O multilinguismo, é uma manifestação de multiculturalidade que nos enriquece. O problema é que precisamos de algo mais que nos dê uma identidade enquanto europeus, sem a qual, a Europa não poderá ter grande futuro.
2. Esta crise em torno do terceiro resgate à Grécia, está longe de estar superada. Basta pensar que os principais atores nacionais dos dois lados do “contrato” que se quer estabelecer (a Grécia e a Alemanha) aprovaram o início das negociações com significativas “deserções” de deputados que apoiam as maiorias governamentais e que ou votaram contra, ou se abstiveram. Mesmo alguns dos que votaram a favor, estão descrentes respetivamente quanto ao caráter desejável do acordo (assinatura sob coação) ou da sua viabilidade de implementação ex post. Na teoria dos contratos, o Código Civil português estabelece que: “É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.” Facilmente se verifica que se aplicássemos esta norma ao “contrato” celebrado na madrugada da passada segunda-feira ele seria potencialmente anulável. Não há dúvida que a Grécia estava em situação de necessidade, tem relativa inexperiência nestes meandros internacionais e estava urgentemente dependente deste acordo. O estado mental do ministro das finanças grego Tsakalotos, foi-nos revelado depois. Nas suas palavras foi o “dia mais difícil da minha vida que me vai assombrar para sempre”. Usando a metáfora de uma hipotética litigância jurídica, neste caso (e esqueçamos os outros países), a Alemanha alegaria decerto que a concessão de benefícios não teria sido excessiva, dado o comportamento anterior da Grécia e da necessidade de garantias reais. O desfecho do caso dependeria da habilidade dos advogados de ambas as partes e, claro, do coletivo dos juízes, mas o que interessa reter é que independente da sentença, o problema é a existência da litigância em si. O que esta crise infelizmente introduziu, e inovou, foi a litigância, latente por enquanto, entre países europeus, em que predominou a decisão do mais forte. Não quero com isto ilibar a responsabilidade de Tsipras e Varoufakis em avaliar corretamente a situação. Dado o que estava em causa, o recurso ao referendo é compreensível e poderia ter sido uma forma de legitimação democrática de uma situação ontológica grega fundamental. A questão que deveria ter sido colocada aos gregos seria esta: “estão dispostos a um terceiro resgate, com condicionalidade associada, como condição de permanência no euro?” Por paradoxal que possa parecer, a pergunta do referendo deveria ter sido acordada entre credores e a Grécia, bem como esclarecidas as condições dessa condicionalidade. Na realidade penso que nenhum governo tem legitimidade democrática de tomar uma decisão de saída do euro, sendo necessário auscultar explicitamente os cidadãos nesse sentido, mas de forma clara.
3. O único benefício potencial desta crise poderia ser a perceção de que a atual arquitetura da zona euro não funciona e que é necessário dar passos concretos, e não declarações de intenções, em direção a uma União orçamental da zona euro. É algo assustador perceber que a maioria dos líderes europeus, incluindo os do governo português, não se apercebam do carácter crucial desta evolução, ou se apercebam mas sejam impotentes para tomar medidas, repito concretas, nesse sentido. Aqui chegados, só parecem mesmo existir duas possibilidades. Uma é adotar um conjunto de medidas que dêem alguma folga orçamental a países com maiores problemas de crescimento e competitividade e maior peso da dívida e, nesse caso, o euro pode permanecer com os atuais países. Outra é manter a arquitetura atual o que, sem renegociação da dívida, levará inevitavelmente à saída da Grécia e, a prazo, eventualmente de outros países, até que o euro, ou se desintegre, ou se torne um clube restrito de países mais competitivos (o que levantaria os problemas da valorização cambial do euro e da contração do mercado da área euro). Portugal não pode continuar ausente deste debate essencial da reforma da zona euro. O que deveríamos estar a discutir é o futuro de toda a zona euro e o de Portugal nele. Neste período de pré campanha eleitoral, em que já estamos, e dada a importância crucial do contexto europeu para o futuro do país, seria útil que todos os partidos se pronunciassem com clareza. Quem defende a saída do euro deve esclarecer que impacto prevê que isso tenha na inflação, na queda dos salários reais e das pensões, na balança comercial, etc. e se tenciona sufragar essa decisão ao escrutínio dos portugueses. Quem defende a permanência no euro deve esclarecer se acha que é desejável, ou não, a manutenção da governação económica do euro nos moldes actuais. Para os mais desatentos, o “semestre europeu” significa, para o bem e para o mal, um acompanhamento do processo orçamental nos estados membros por parte da Comissão Europeia. A posição do governo português tem sido, primeiro ir para além da troika, e agora seguir acriticamente as regras europeias como se não fossem algo flexíveis e se não houvesse parceiros estratégicos de Portugal. Um novo governo progressista em Portugal permitirá que se efetivem essas alianças, desde já com a Itália e com a França e, dependendo dos resultados eleitorais, possivelmente com a Espanha. Daqui poderá resultar uma nova ambição para a Europa progredir para uma união orçamental tão necessária na situação atual.
Professor do ISEG/ULisboa