Uma vendedora de pipocas para curar O Desprezo

Recuperando a personagem do argumentista Riccardo Molteni, criada por Alberto Moravia e levada ao cinema por Godard, o histórico Matthias Langhoff constrói Cinéma Apollo. Uma tentativa de compreender e enterrar o desamor, para ver no Festival de Almada.

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Eis Riccardo (e talvez Emilia) muitos anos depois, numa sala de cinema... SAMUEL RUBIO
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Langhoff quis colocar Riccardo perante uma mulher que poderia ser Emilia 20 anos mais tarde, escavando e pesquisando a sua vida como se nessa vendedora de pipocas à entrada do cinema de Novara SAMUEL RUBIO
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Riccardo está sempre a regressar ao momento do seu abandono SAMUEL RUBIO

Riccardo, argumentista, Emilia, actriz, são personagens do escritor italiano Alberto Moravia no romance O Desprezo, famosamente adaptado ao cinema por Jean-Luc Godard numa das suas obras maiores. Cinéma Apollo, texto de Michel Deutsch e Matthias Langhoff, encenado pelo próprio Langhoff com a assistência do seu filho, Caspar, parte do romance de Moravia, alude ao filme de Godard, mas debruça-se acima de tudo sobre este desespero de Riccardo por não conseguir livrar-se do passado, num interminável exercício de ruminação de um amor (o seu) espancado violentamente pela transformação de outro amor (o dela) num visceral e corrosivo… desprezo. Em passagem pelo Cinéma Apollo para assistir à projecção de Il Ritorno de Ulisse, Riccardo revisita o filme que escreveu e durante o qual perdeu (ou empurrou?) Emilia para o abastado produtor Battista. Mas revisita sobretudo esse momento da perda, interessado que está, na verdade, em rever apenas a cena em que, aos 47 minutos e 13 segundos do filme, Ulisses se despede de Circe (a amante) para regressar a Ítaca ao encontro de Penélope (a mulher).

Recapitulemos: Il Ritorno de Ulisse é o filme que Riccardo escreve, desafiado pelo realizador Hans Rheingold a adaptar A Odisseia, de Homero. E é essa rodagem que está no centro da implosão amorosa escrita por Moravia. Na peça que esta sexta-feira chega ao Centro Cultural de Belém, via Festival de Almada, Langhoff atira-se a este enredo talvez por acusar a demasiado tentadora provocação que a vida lhe preparou. “O romance do Moravia desempenhou um papel muito importante na minha juventude, foi um livro de que gostei imenso”, recorda ao Ípsilon. Ao ser desafiado a adaptá-lo, foi impossível ao encenador suíço não sentir que, de certa maneira, lhe era proposto seguir também os passos de Riccardo. Temendo talvez as consequências da sua aceitação, propôs-se então contar “uma outra história”, reanimando o guionista (enquanto ela é um fantasma ausente, com o rosto inevitável de Brigitte Bardot, a Emilia de Godard), colocando-o num posto de observação sobre um passado ainda em chamas.

Embora se recuse a chamar a Cinéma Apollo “um epílogo” para a história de Moravia e Godard, dir-se-ia que Langhoff parte da cena final. Em O Desprezo, Godard coloca o realizador (Fritz Lang, na sua versão) prestes a rodar a sua própria cena final – quando Ulisses regressa a Ítaca e olha de novo a sua pátria pela primeira vez. Imediatamente antes, Riccardo anunciou a Lang que está de partida para acabar de escrever a sua peça de teatro. Parece ser esta a primeira deixa que Langhoff recolhe. E logo Lang lhe devolve que está a tratar de terminar o seu filme: “É sempre preciso terminar aquilo que se começa”, diz-lhe. Cinéma Apollo parece igualmente responder a esta absoluta necessidade de matar e enterrar o desgosto do argumentista, consumido durante anos pela inexplicável razão de um amor que, fora de prazo, se transformou monstruosamente em desprezo.

“A princípio”, revela Matthias Langhoff, homem histórico do Berliner Ensemble e do Théâtre Vidy-Lausanne, “o que me interessava em relação ao meu percurso era tratar-se de um intelectual da mesma época, que trabalha um pouco no mesmo métier, e interessava-me perceber de que maneira aquela traição se relacionava com a sua arte, a sua obra, e como mudou a sua vida”. Depois então, um dado novo. Langhoff quis também colocar Riccardo perante uma mulher que poderia ser Emilia 20 anos mais tarde, escavando e pesquisando a sua vida como se nessa vendedora de pipocas à entrada do cinema de Novara, onde Il Ritorno de Ulisse é exibido, pudesse encontrar as razões de Emilia. Não por acaso, nunca chegamos a saber o nome da vendedora, uma vez que aquilo que interessa é que permaneça uma personagem na qual Riccardo projecta a sua necessidade de pacificação. “É uma mulher com uma história de vida totalmente diferente”, diz Langhoff, “e percebe-se naquele momento que uma relação de amor entre os dois até seria possível, mas infelizmente nunca acontecerá.” Riccardo está ali para matar uma relação, não para fazer nascer outra.

A escolha da personagem como vendedora de pipocas é, para o autor e encenador, “uma questão técnica” com reminiscências de um antigo projecto que sempre quis desenvolver, uma peça em que criaria um tête-à-tête entre Einstein e uma vendedora de bilhetes de cinema – “é uma coisa de juventude que não me larga e que nunca saiu do papel, mas talvez tenha chegado assim a esta ideia em que Riccardo encontra esta mulher que, como vendedora de pipocas, é normalmente a última pessoa a deixar o cinema”. Mas é também alguém que Riccardo pode encurralar atrás do bar, cercando-a em busca das respostas de que precisa. Começa por lhe pedir uma cerveja, ela avisa que não tem licença para a venda de bebidas alcoólicas, mas isso pouco interessa, mesmo que a alternativa seja um bistrot do outro lado da rua. Riccardo não se pode distrair: “Tenho de rever a sequência em que Ulisses se despede da sua amante para voltar a casa… Voltar a Ítaca, a casa, para reencontrar a sua mulher…”

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Decisivamente marcado pelo romance de Alberto Moravia na sua juventude, Matthias Langhoff também não ignorou o filme em que Jean-Luc Godard o adaptou DR

O filme antes da peça
“O que nos interessava, a Hans Rheingold e a mim”, explica Riccardo à vendedora de pipocas, “era o drama conjugal entre Ulisses e Penélope. A mulher arcaica e o homem moderno”. Por sua vontade, diz ainda, não haveria Circe no filme, não haveria tentação, apenas o conflito aberto na vida do casal. Mas é Circe que vemos, alimentando os companheiros de Ulisses, atirando-lhes bolotas e frutos como faria com porcos. Só que vemos Circe no prólogo que Langhoff coloca antes do verdadeiro início de Cinéma Apollo, num pequeno filme intitulado Encore Une Bière, em que o antigo companheiro de Langhoff no Berliner Ensemble, o majestático actor Manfred Karge, toma o seu lugar. “Ele representa-me um pouco enquanto leio Homero”, admite Langhoff. “Adoro ler Odisseia nessa velha tradução para alemão do século XIX que se mantém muito bela, simples e forte.”

Ensaiando de forma despreocupada uma tentativa de montagem de uma encenação de Odisseia numa pequena aldeia suíça onde, de facto, mora um grupo de técnicos que tem acompanhado Langhoff em várias produções apresentadas Europa fora, não se estabelece uma relação directa entre Encore Une Bière e o texto de Cinéma Apollo. “É algo de muito pessoal”, confessa, descartando ligações que possam permanecer ocultas. “Tinha vontade de fazer as duas coisas – este filme e esta peça.” Mas há uma pequena sugestão que fica no ar: ao lançar primeiro uma pequena passagem pastoril de uma Odisseia que se constrói de forma pouco obsessiva, com o texto a irromper calmamente sem procurar outro lugar que não seja o da beleza simples dos seus versos, Langhoff parece deixar a pista de que, a cada momento, por maiores ou menos ligações formais, cada peça de teatro começa sempre na Grécia Antiga, mesmo que enquanto prolongamento remoto ou recusa de inscrição em qualquer tradição teatral. “Os mitos gregos continuam a ter uma importância enorme e a desempenhar um papel extraordinário”, defende. “São um material precioso que nos ajuda a compreender as grandes questões das nossas vidas, como podemos alcançar um outro Estado, uma outra justiça. Espero que a Grécia não seja de novo destruída por uma certa sede de poder europeia. Quando penso nisso, penso também com muita intensidade em Portugal e no que ‘conseguiram’ com essas políticas neo-liberais claustrofóbicas.”

Odisseia está sempre em pano de fundo em Cinéma Apollo, da mesma maneira que Riccardo está sempre ocupado pela sua história de amor e Langhoff admite estar preenchido pelo romance de Moravia. Ulisses está sempre a regressar da guerra de Tróia, Riccardo está sempre a regressar ao momento do seu abandono, na cabeça de Langhoff está sempre a ouvir-se: “Emilia devia ter falado comigo, abrir-se comigo para dissipar o desprezo, o equívoco cruel que toldara o nosso amor. Mas não o fizeste porque querias continuar a desprezar-me até à morte. O equívoco que envenenou a nossa vida continua após a morte de Emilia.” O fim, afinal, nunca chega.

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