Que tal um “capitalismo de rosto humano”?
O que poderá acontecer à herança humanista da cultura alemã?
É um alívio, não fosse a gente alarmar-se com uma nova Gleichschaltung (sincronização) à maneira de Goebbels que punha todos a ler pela mesma cartilha. As declarações de Sigmar Gabriel e Martin Schultz sobre o referendo grego fizeram-nos temer por isso. Pois se já nem os putativos socialistas alemães têm um pensamento e um projeto próprios – se já nem eles dão ouvidos a intelectuais como Habermas e outros críticos do atual curso da UE, que sempre lhes foram próximos – que poderá acontecer à herança humanista da cultura alemã?
Peter Weiss, no seu romance Estética da Resistência (1975-1981), assaca aos socialistas alemães graves responsabilidades na eclosão da primeira guerra mundial, e na ascensão (“resistível”, como diria Brecht) de Hitler ao poder, a qual, por sua vez, levou à segunda guerra mundial. O seu diagnóstico é duro. Fala de traição da social-democracia e cita o Diário de Heine, em Paris: “a única teoria capaz de abalar o poder da alta finança foi a ideia de comunismo”. Quase dois séculos depois, será que Heine continua a ter razão?
Com efeito, nas últimas décadas, como observa o Sr. Merkel (entrevista publicada no jornal Social Europe, de 10 de Julho), “as democracias removeram a maior parte dos limites antes utilizados para conter o capitalismo, e fizeram-no consciente e negligentemente”. “Ao desregular os mercados, especialmente os mercados financeiros, a democracia privou-se do seu próprio poder”. “Em questões cruciais de política monetária, orçamental e fiscal, quem dá o tom são os investidores mais poderosos, crises bancárias ou supostos constrangimentos de ordem prática, e não as maiorias democráticas”. “A desnacionalização económica contribuiu de forma alarmante para este processo, sobretudo no que respeita ao controlo democrático sobre importantes parâmetros económicos”. “A política orçamental de cada Estado, um elemento-chave no esforço por criar uma sociedade justa, perdeu importância”, enquanto, por outro lado, “a União Europeia, sobretudo empenhada na lei da concorrência, se tornou uma espécie de cavalo de Tróia dos mercados, em vez de se afirmar como baluarte contra a despolitização dos mesmos”.
Por isso – continua Wolfgang Merkel –, temos de arrepiar caminho e “obrigar os mercados a ser de novo mais conformes à democracia”. “A tarefa que temos pela frente é, pois, a de devolver mais poder ao Estado democrático”, o que não pode ser feito “sem reconquistar parte do território que cedemos ao capital desregulado”. “O capitalismo não pode ser domado pela sociedade civil... Sem um forte Estado democrático as nossas sociedades não podem ser estruturadas decentemente.” “Sejamos claros: a longo prazo, os mercados desregulados destroem-se a si próprios e destroem a coesão social”.
Neste diagnóstico, a situação é, pois, vizinha da anarquia (ausência de Estado). Não, da anarquia que Marx e Engels prefiguravam no Manifesto de 1848 como realização última do ideal comunista: “uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”. Mas sim de um outro tipo de anarquia, que não devia assustar menos os tradicionais defensores da Família e da Propriedade: aquela em que todo o Direito é derrogado por uma única norma: a da otimização permanente e ilimitada da taxa de remuneração do capital.
Numa tal situação já nem se pede aos socialistas europeus que empunhem agora de novo a bandeira do socialismo. Não é preciso ir tão longe. Basta que lutem, ao menos, por... um “capitalismo de rosto humano”.
Professor catedrático jubilado (FCSH-UNL)