Esta semana no Porto discute-se o punk, vê-se o punk, ouve-se o punk
Até à próxima sexta-feira, o Porto acolhe a conferência Keep It Simple Make It Fast. A academia a discutir nas salas a cultura musical underground e a sair à rua para ver e ouvir como ela se manifesta.
Quando se aventurou na tese de doutoramento de que resultou, anos depois, em 2014, o livro A Instável Leveza do Rock – Génese, Dinâmica e Consolidação do Rock Alternativo em Portugal (1980-2010), Paula Guerra não podia deixar de sentir alguma solidão. Academia e cultura pop, mais ainda nas suas manifestações marginais, não tinham propriamente uma relação próxima em Portugal. A doutorada em Sociologia e professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto estava a entrar em terreno inexplorado. Hoje sentir-se-á bem menos sozinha. Afinal, a academia começa a olhar com mais interesse para o tema. Temos livros que o provam, como As Palavras do Punk, que assina com Augusto Santos Silva, que nos oferece uma panorâmica sociológica do que foi e é o punk em Portugal, através da voz dos seus protagonistas. E durante esta semana confirmaremos que sim, é mesmo verdade.
Keep It Simples, Make It Fast! Underground Music Scenes and DIY Cultures é o nome do projecto de pesquisa criado no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, em parceria com instituições como a Faculdade de Economia da mesma instituição, o australiano Griffith Centre For Cultural Research ou a espanhola Universidade de Lleida. O seu objectivo é mapear, documentar, analisar e questionar as manifestações do punk e suas ramificações em Portugal. O ano passado, o da estreia, foi um “partir para aventura”, conta Paula Guerra. “Não sabíamos a repercussão que teria." No final da sessão de encerramento a opinião geral era de que a primeira edição não poderia ser a única. Não é. O segundo congresso KISMIF, que teve início dia 7 de Julho e que arranca verdadeiramente esta segunda-feira, atraiu ao Porto 220 participantes de 30 países.
O trabalho desenvolvido cativou a comunidade científica internacional, que acorre agora em grande número, estimulada pelo trabalho que é desenvolvido em permanência e pela peculiaridade desta “sinergia entre a ciência, a sociedade e as artes”. No KISMIF, tanto se poderá assistir, na Faculdade de Letras, às palestras de Andy Bennett, coordenador da conferência com Paula Guerra e uma das autoridades no tema das subculturas musicais, como acompanhar dissertações sobre a identidade cultural do hip hop ou da música electrónica. Mas também há as exposições de Ondina Pires, ex-baterista dos Pop del’Arte e vocalista dos Great Lesbian Show, no Palacete Visconde Balsemão, e a do ilustrador Esgar Acelerado, no Edifício Montepio. Tanto se poderá assistir, dia 14, ao documentário Bastardos – Trajecto do Punk Português (1977-2104), realizado já no âmbito do KISMIF, no Teatro Rivoli, como acompanhar, no mesmo espaço e no mesmo dia, um concerto de Tó Trips (toda a programação em www.punk.pt).
“A principal repercussão [do KISMIF] é a multiplicação de iniciativas, termos uma cooperação com o pelouro da Cultura da Câmara Municipal do Porto, parcerias com a Casa da Música ou com espaços como o Plano B”, explica Paula Guerra. Sobretudo tendo em conta o contexto, muito de acordo com a ética criativa abordada: “O incrível é que é feito num do it yourself académico, num contexto em que não há financiamento para nada em Portugal, e conseguimos envolver agentes e pessoas interessadas.”
História do punk português
Durante a semana terá lugar o pré-lançamento de O Meu Espelho, 11 histórias de vida de músicos como Adolfo Luxúria Canibal, João Peste, Paulo Furtado, Rui Reininho ou Zé Pedro, que Paula Guerra escreveu a partir do trabalho realizado para a sua tese de doutoramento, e de More Than Loud – Os Mundos Dentro de Cada Som, que a mesma organizou e que dá conta das relações entre os diversos géneros musicais e o universo social em que se inserem (ambas dia 14, no Rivoli). Entretanto, já conhecemos o supracitado As Palavras do Punk (Aletheia Editores), obra que, assente em sólidos pressupostos científicos, nos oferece, pela primeira vez, uma aturada história do punk em Portugal, da sua evolução, da motivação dos seus músicos, fãs e outros representantes da subcultura, bem como uma interpretação do que nos diz o seu discurso. “Pegamos nas manifestações punk desde 1977 até hoje. Não deixámos de lado nenhum disco, nem nada a que tivéssemos acesso até ao momento presente. A nossa perspectiva foi estudar tudo o que as pessoas designassem como punk”, explica Paula Guerra.
Vamos lá atrás, aos fundadores Aqui d’El Rock de Há que violentar o sistema, o primeiro single do punk português, editado em 1978, e passamos pelos Crise Total, fundados em 1982, ainda activos e um dos maiores casos de culto do punk português, a par dos Ku de Judas ou dos Censurados de João Ribas. Ao longo da obra, viajando pelo tempo, e mergulhando numa cultura cuja influência se alargava bem para além da música, descobrem-se peculiaridades, ou seja, percebe-se claramente o que é isso do punk português e o que o distingue dos demais.
Paula Guerra destaca, por exemplo, o contexto histórico: “Tivemos uma ditadura de 40 anos que foi muito condicionadora da voz activa na praça pública” – ao mesmo tempo, a natureza do regime do Estado Novo preveniu o surgimento, como aconteceu noutras latitudes, de bandas associadas à extrema-direita. Refere também o alheamento da indústria discográfica, que ignorou quase totalmente o punk português (o disco mais famoso dos Crise Total é a cassete de um concerto gravado no Rock Rendez Vous). E destaca o recurso ao português. “Noutros países houve uma cedência muito maior ao inglês, enquanto cá só algumas bandas do hardcore é que cantavam em inglês.”
Curiosamente, num género que faz da luta à descriminação uma das suas bandeiras, não só se regista um predomínio esmagador da presença masculina, como as próprias letras revelam, mais do que imaginávamos, certos traços machistas, inadvertidos, é certo, mas presentes. “É um reflexo da forma como a sociedade encara o papel das mulheres e dos homens. É uma determinação estrutural da própria sociedade”, comenta a professora universitária. “O punk não consegue resistir ao sítio onde estamos, às nossas atitudes e identidade. É um calcanhar de Aquilies destes movimentos. Sendo tão a favor da igualdade, acabam por reproduzir algumas desigualdades.”
O que parece certo é que a velha conversa da morte do punk não faz sentido. O som pode mudar, tal como a forma como se apresenta visualmente, mas mantém-se presente. “Não interessa discutir se está vivo ou não. Mais importante é perceber que o modus operandi, o do do it yourself, as colagens, o bricolage, mesmo em termos musicais, continua presente.” Há um livro chamado As Palavras do Punk que explica porquê. E uma conferência a ocupar o Porto até sexta-feira a ilustrá-lo de forma veemente.