Isto (sim) é um filme

Depois de dois objectos ensaísticos e abstractos, Jafar Panahi deixa a luz entrar na clandestinidade em que resiste à proibição de filmar com Táxi. O resultado é um dos grandes filmes de 2015, e talvez mesmo o melhor filme do cineasta iraniano

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Parece uma piada descartável num filme que está cheio de piadas, mas não há nada de descartável, nem de inocente, neste gague aparentemente improvisado. E é nele que reside uma das chaves possíveis para o extraordinário novo filme do cineasta iraniano: é que Jafar Panahi não faz um filme “distribuível” no seu pais natal – ou pelo menos não “distribuível” de acordo com as regras da República Islâmica – há pelo menos seis anos.

Aliás, ele nem pode mesmo fazer filmes: devido à sua militância como porta-voz do “movimento verde” que contestou a vitória de Mahmoud Ahmadinejad em 2009, foi condenado a seis anos de prisão, interditado de realizar durante vinte anos, proibido de viajar para fora do Irão ou sequer de comunicar com o estrangeiro. E, no entanto, aqui está ele de novo, com o terceiro filme que realiza na “clandestinidade”. (Há cineastas que têm interregnos maiores sem filmar em países ocidentais.) Sem identificar os seus “colaboradores”, para evitar represálias, sem genéricos, porque os seus filmes não seguem as “regras” da República Islâmica do Irão, as mesmas que a sua sobrinha pespineta diz que tem de seguir para que o seu filme de escola – que roda afincadamente com uma pequena câmara fotográfica enquanto o tio a leva a casa – possa ser “distribuível” e mostrado no concurso de filmes escolares.

E vamos à ironia maior de todas: depois de Isto Não É um Filme (2011, co-dirigido com Mojtaba Mirtahmasb) e Closed Curtain (2013, co-dirigido com Kambozia Partovi), Táxi, esta semana nas salas nacionais, é o filme mais “distribuível” de Panahi, não só da sua “obra ao negro” como provavelmente de toda a sua obra. É o filme onde o realizador deixa entrar humor, luz, vida, depois de dois objectos abstractos e ensaísticos onde a angústia e a incerteza dominavam. Talvez  tenha ido buscar qualquer coisa a Chaplin – já dizia a sua canção de Tempos Modernos, “de que serve chorar, vais ver que a vida vale a pena se sorrires” - ou talvez tenha seguido a máxima dos Monstros & Companhia da Pixar - “o riso é mais poderoso do que o medo”. Por onde se quiser ver, contudo, Táxi é o mais conseguido dos três filmes da clandestinidade do cineasta, e não o poderia ter sido sem os dois anteriores, pontos de passagem obrigatórios de um longo túnel em direcção à luz.

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Os três filmes da clandestinidade: Taxi (em cima), Isto Não É um Filme (2011) e Closed Curtain (2013)
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Provas de vida
O que faz um cineasta que não pode filmar? Um filme que não é um filme – e Isto Não é um Filme, “contrabandeado” para fora do Irão e para Cannes 2011 dentro de uma pen USB, não podia ter um título mais explícito. Expunha a impossibilidade de construir uma narrativa da resistência, através de um “video-diário” do aborrecimento quotidiano, onde se vislumbrava já algum humor (com a presença do iguana de estimação) e se sentia uma espontaneidade nascida do improviso, uma esperança angustiada e ansiosa sobre o que se poderia seguir. Isto Não é um Filme funcionava em várias camadas meta-ficcionais, onde o ensaio sobre a natureza do cinema, o diário do quotidiano banal e a ideia de aventura de rodar um filme como um miúdo desafia uma proibição se cruzavam para criar um objecto alimentado por uma qualquer energia nervosa de resistência.

Mas, quando Panahi levou Closed Curtain a Berlim 2013, reconhecia-se um cineasta perdido no seu próprio labirinto. Se Isto Não é um Filme ainda tinha obtido repercussão internacional, Closed Curtain ficou restrito em grande medida ao circuito de festivais e sessões especiais, em grande parte devido à sua dimensão de abstracto recursivo, mais próximo das experiências formais crípticas do nouveau roman de Alain Robbe-Grillet do que do ensaio ou da narrativa tradicional. Era um filme que parecia tombar no desespero, colocar em imagens a sensação de não existir saída para Panahi, de estar preso num inferno.

Tal como o predecessor, Closed Curtain navegava entre vários níveis meta-ficcionais, mas fazia-o de modo mais críptico e fechado: de um lado, o próprio Panahi trabalhando na sua casa de férias, supervisionando obras e construindo uma narrativa que vemos em encenada num outro nível narrativo, onde um artista (interpretado pelo co-realizador Kambozia Partovi) foge para a sua casa de campo para salvar o cão de uma lei absurda e acolhe uma jovem fugitiva. 

TÁXI DE JAFAR PANAHI trailer from Midas Filmes on Vimeo.

A parábola, construída a meias com Partovi, era de uma claustrofobia sufocante: onde Panahi abria as cortinas, o colega fechava-as, como se o realizador tivesse de se habituar ao (muito persa) fatalismo do destino escrito. Havia em Closed Curtain algo de exorcismo dos demónios do cineasta, a par de um qualquer esbracejar para provar que estava vivo apesar de tudo, mas tudo se resolvia de repente numa espécie de “buraco negro” desconfortável, um labirinto sem saída aparente onde se reconhecia um realizador que parecia ter perdido toda e qualquer esperança.

Sair da casca
É verdade que, no espaço que medeou entre Closed Curtain e o novo Táxi (Urso de Ouro em Berlim 2015, onde foi considerado o grande filme do concurso), as coisas mudaram no Irão, com a “troca” do conservador Ahmadinejad pelo mais liberal Hassan Rouhani a “aliviar” a pressão e a reabrir o diálogo com o Ocidente. Se a esse alívio não correspondeu ainda o “perdão” a Panahi, Táxi mantém intacta a dimensão ensaística, metafórica, dos filmes anteriores dentro de uma estrutura narrativa mais convencional que funciona também em engajamento directo com a realidade iraniana contemporânea. Aqui, Panahi "improvisa-se" taxista em Teerão e filma os clientes que vai apanhando ao longo de uma manhã (encenado ou improvisado? Ao espectador o prazer de descobrir...) De certo modo, em Táxi Panahi “sai da casca” e abre a cortina para deixar entrar a luz, e está mais próximo do cinema persa que conquistou o mundo nos anos 1990 – os filmes de Kiarostami, Makhmalbaf ou Ghobadi – onde o filme parecia nascer do mundo em que tudo se passava.

Kiarostami, aliás, é a referência inevitável de Táxi, porque, tal como o seu seminal Dez, este é também um filme onde a câmara nunca sai do carro, mas há outra coisa no novo Panahi que já não víamos há muito no seu cinema (e que, mesmo em Offside, estava sempre colorida por uma qualquer tristeza impossível de afastar): uma luminosidade, uma energia que parece irradiar do verdadeiro centro que é a sobrinha pespineta refilona que quer fazer o tal filme “distribuível”. O tio experiente, esse, encarrega-se de lhe demonstrar, por A+B, como o mundo acaba por nos escapar sempre ao controlo. 

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Taxi
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Quando a sua tentativa de manipular a realidade prova ser infrutífera e resulta em berros infantis de “tu não estás a fazer isto como deve ser!”, Panahi está também a mostrar-nos, a nós e à Repúbica Islâmica que insiste em dizer “o que deve ser um filme”, que o mundo não responde aos diktats que se lhe querem impor, quer sejam impostos por um realizador ou por um estado. Ao fazê-lo, reencontra também o élan que o seu cinema perdeu de vista com a sua condenação: a de um cinema do humano, atento e compreensivo, onde a tragédia e a comédia seguem paredes-meias. E onde troca o desespero angustiado de não saber o que se segue com o sorriso de quem aprendeu que os quartos escuros não fazem bem a ninguém. Táxi pode não ser um filme como a República Islâmica o quer, ou um filme como muita gente acha que deve ser um filme. Mas é, claramente, um filme. Um dos maiores de 2015. 

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