A Grécia e as “infelizes dicotomias” continentais
Talvez tenha chegado o momento de introduzir maior flexibilidade marítima na União Europeia.
Somos hoje bombardeados com apelos exaltados para apoiar um dos lados — como se houvesse apenas dois lados. Ou temos de ser contra a chamada austeridade imposta por Berlim e Bruxelas a Atenas, ou somos contra o chamado antieuropeísmo despesista e irresponsável de Atenas.
Nunca tive qualquer simpatia pela extrema-esquerda do Syriza, nem pelos seus aliados da extrema-direita — que aliás aqui denunciei em devido tempo, mal chegaram ao poder. Recordei na altura que o primeiro gesto oficial do sr. Tsipras foi receber o embaixador da Rússia.
Mas não me parece normal a agitação que por aí anda, denunciando a alegada enorme ameaça à União Europeia causada pela Grécia.
Ameaça porquê? Porque não pode a União Europeia oferecer à Grécia uma ordeira saída do euro? Por que motivo não quer o Syriza que a Grécia se junte ordeiramente aos países membros da União Europeia que não são membros do euro? Por que motivo não previu o tratado de constituição do euro uma cláusula de saída ordeira da chamada “moeda única”?
Estas perguntas geram novas perguntas. Por que motivo se verifica uma enorme divisão entre países do Norte e do Sul na zona euro? O projecto do euro não visava, segundo foi anunciado, reforçar a convergência e a unidade — a famosa ever-closer union — entre os países membros? Por que motivo os resultados têm sido os opostos do que tinham sido anunciados?
Receio ter de recordar que houve quem na devida altura tivesse alertado para os efeitos não intencionais da criação de uma “moeda única” sem existir um “país único”. Foi então observado que uma moeda única requer transferências automáticas entre os seus membros, o que supõe uma política orçamental única e, por consequência, um governo único.
Mas, pode haver um orçamento único e um governo único, quando não existe um país único na zona euro? Existe certamente uma escola que acredita que sim (embora, na verdade, essa escola não saiba que acredita, apenas acredita que sabe). Acreditam eles que os Estado-nação foram simples produto de decisões políticas. Acreditam também que as instituições e outros artefactos sociais são basicamente produto de decisões políticas.
Acontece que não são. É certo que as decisões políticas são um importante ingrediente das instituições sociais. Mas não são o único e, frequentemente, não são o decisivo. As instituições sociais não são fabricadas especificamente por ninguém. Emergem de um longo e complexo processo de interacção descentralizada que não é susceptível de comando central — mesmo que esse comando central seja exercido pela chamada “Razão”, ou mesmo pela “Razão libertadora de preconceitos e tradições não racionais” (como seria o caso dos “preconceitos e tradições nacionais”).
Não pretendo com isto concluir que a criação do euro tenha sido necessariamente um erro. Mas foi seguramente um erro gigantesco ter criado o euro sem uma cláusula de saída ordeira. E é um erro gigantesco identificar a moeda única com a União Europeia. A moeda única deve ser apenas uma opção possível para aqueles países que queiram subscrevê-la. Por isso mesmo, esses mesmos países devem poder sair ordeiramente do euro quando maiorias eleitas preferirem políticas divergentes das do euro.
Receio bem que a dogmática interpretação do euro como projecto de engenharia social irreversível, como diria Karl Popper, tenha criado um colete de forças. Infelizmente, coletes de forças tendem a ser recorrentes na tradição política do continente europeu. Alexis de Tocqueville descreveu-os como “o perpétuo e estéril conflito entre o Antigo Regime e a Revolução”. Ralf Dahrendorf designou-os como a recorrente tendência continental para gerar “infelizes dicotomias”.
Manda a prudência que nos mantenhamos tão longe quanto possível dessa ilusão continental sobre a inevitabilidade de escolhas dicotómicas. Existe sempre uma via media. Talvez tenha chegado o momento de introduzir maior flexibilidade marítima na União Europeia.
Maria Barroso: O estado de saúde de Maria Barroso é motivo de consternação para todos os portugueses que amam a liberdade e a democracia. Maria Barroso ensinou-nos que é possível resistir à tirania, de direita e de esquerda, sem ficar refém do extremismo, do ódio, ou da intolerância. Nestes momentos difíceis, recordemos com ternura o seu exemplo de infatigável defensora da liberdade e responsabilidade pessoal.