A difícil relação entre o caminho-de-ferro e os apetites imobiliários
O que há de comum entre as estações de Santa Apolónia, Trofa, Espinho, Faro, Lagos e Vila Real de Sto. António? Todas se defrontam com interesses imobiliários na zona da operação ferroviária. Algumas já perderam a batalha.Outras esperam pelo fim da crise.
Trofa, 16 de Agosto de 2010
É inaugurada a nova estação e uma variante da linha do Minho que afastam o caminho-de-ferro 800 metros do centro da cidade. A nova linha mede 3555 metros e inclui um túnel de 404 metros e um viaduto de 327. Custou 66 milhões de euros e foi uma obra não desejada pela CP e pela Refer que, em inúmeras reuniões, sempre tentaram convencer os autarcas da cidade que era preferível manter a estação no centro e que havia outras prioridades na rede ferroviária nacional onde aplicar o dinheiro.
Foi uma guerra perdida para o caminho-de-ferro. A linha do Minho já fora modernizada com excepção do pequeno troço que atravessava a Trofa, pelo que a solução foi mesmo desviá-la construindo uma variante.
Hoje, no lugar da velha estação e no canal ferroviário desafectado, ainda não surgiu qualquer projecto imobiliário.
Está tudo relativamente abandonado, em consequência da crise, dado que há inúmeras habitações à venda na Trofa. E espera-se também que um dia o Metro do Porto chegue à cidade, usando uma parte do velho corredor ferroviário.
Espinho, 4 de Maio de 2008
Um Alfa Pendular no sentido Lisboa-Porto é o primeiro comboio a inaugurar, às 6h55 da manhã, o túnel de 950 metros que atravessa a cidade e que a partir de agora é parte integrante da linha do Norte. Os comboios deixaram de passar pelo centro da cidade.
O túnel deveria ter custado 47,3 milhões de euros e demorar 30 meses a ser construído. Acabou por custar 60 milhões e demorou 56 meses. Mais uma vez não era uma prioridade para a Refer nem para a CP, num país onde coexistem linhas férreas modernizadas com elevados padrões de segurança e outras que quase não saíram do séc. XIX e precisavam de investimento urgente.
Mas Espinho não queria manter a linha férrea entre a cidade e o mar. O objectivo era requalificar a zona. No entanto, oito anos depois, o espaço que ficou livre por de cima do túnel ainda só foi alcatroado e há quem diga que aquela área, a nu, parece uma pista de aviação. Um parque de estacionamento ocupa uma parte da antiga linha férrea e a outra parte acolhe periodicamente festas, circos e equipamentos de lazer. Há pouco mais de uma semana, porém, foi anunciado um projecto de reabilitação urbana para a zona.
Zona de Belém, 2004
Em Lisboa o caminho-de-ferro aparece de vez em quando nas intenções camarárias, não como uma mais-valia para satisfazer a mobilidade da população, mas como um empecilho. Em Fevereiro de 2004 o então presidente da câmara, Santana Lopes, deu o seu apoio entusiástico ao projecto do arquitecto Norman Foster que previa acabar com a linha férrea entre Cais do Sodré e Santos para reabilitar a zona ribeirinha. O autarca ía mais longe: sugeriu que a linha de Cascais terminasse em Alcântara ou até em Algés.
Na altura, o professor José Manuel Viegas (hoje secretário-geral do Fórum dos Transportes da OCDE) foi peremptório: “é uma estupidez!”, disse, argumentando, entre outras coisas, com o investimento feito no interface do Cais do Sodré com o Metro.
Também o enterramento da linha da férrea na zona de Belém já várias vezes foi ponderado, mas, pelos vistos, foi mais fácil fazê-lo em Espinho do que em Lisboa.
Faro e Lagos
Mais a sul, quando José Vitorino foi presidente da Câmara de Faro (2001-2005), quis também retirar a linha do comboio do centro da cidade para acabar com o efeito barreira sobre a ria. Uma variante resolveria o problema, mas a cidade perderia a estação no centro urbano. O projecto não avançou. Até porque na sua localização actual é mais fácil construir um ramal para o aeroporto, projecto este que tem sido sucessivamente adiado.
Em Lagos a estação de caminhos-de-ferro já foi um edifício marcante na entrada da cidade, separada por uma ponte. Mas a expansão urbana relegou-a para as traseiras de uma marina onde permanece escondida. Em 2001 o PÚBLICO noticiou um projecto da Refer no valor de 3 milhões de contos (15 milhões de euros) para ali urbanizar uma zona ferroviária e portuária de 250 mil metros quadrados.
Dois complexos imobiliários com hotel, apartamentos e um núcleo museológico na velha estação faziam parte do programa, ao mesmo tempo que o términus da linha do Algarve (Lagos é a última estação de Barlavento) seria recuado, ficando o acesso ao comboio mais longe da cidade. O projecto ainda não avançou.
Vila Real de Santo António
Já em Vila Real de Santo António a autarquia conseguiu – com o apoio da Refer e da CP – acabar com os dois quilómetros de linha férrea que serviam a estação terminal de Guadiana. Esta ficava em pleno centro da cidade, junto ao rio e à estação fluvial, dando ligação aos ferrys para Ayamonte.
O percurso encerrado era precisamente o ribeirinho, com grande potencial para projectos imobiliários. O comboio desapareceu, mas nem uma centena de metros daquela frente foi requalificada. Parte da linha foi alcatroada. O restante, incluindo a estação, permanece ao abandono. Pelo menos até que a crise alivie e faça renascer os apetites imobiliários.