A crise da consciência política europeia

Mau grado a evolução verificada nos últimos tempos, sob muitos aspectos positiva, os principais responsáveis políticos europeus têm insistido na promoção de uma linha política que não tem propriamente produzido resultados agradáveis.

É conhecida a minha posição acerca do Syriza e do verdadeiro significado do seu sucesso eleitoral. Isso não me impede, contudo, de reconhecer um mérito a Alexis Tsipras – o de ter procurado recolocar no plano político aquilo que nunca deveria ter sido remetido para um âmbito estritamente técnico. Essa mudança reveste-se de enorme importância. Se tivesse sido devidamente tratada por todas as partes envolvidas poderia ter concorrido de modo decisivo para a alteração dos termos em que se tem vindo a processar todo o processo negocial. Abandonar-se-ia a relação credores/devedor e passar-se-ia para um outro tipo de abordagem, assente no princípio do diálogo entre sujeitos políticos empenhados num amplo projecto de natureza supranacional. Infelizmente assim não sucedeu, devido, por um lado, ao extremismo ideológico do Syriza, e, por outro, ao conservadorismo das principais lideranças europeias. A tentação – a que todas as partes sucumbiram – de transformar a questão num conflito entre um governo grego aureolado de uma pretensa pureza regeneradora e um centro europeu obstinado na defesa de uma rígida ortodoxia financeira impediu a concretização daquilo que se impunha: uma radical alteração da natureza do próprio processo negocial.

O Syriza não nasceu por geração espontânea. Pelo contrário, a sua afirmação resultou da progressiva degradação da imagem pública de formações políticas instaladas num modelo com características clânicas e clientelares e da capacidade apelativa de um conjunto de propostas dotadas de um elevado grau de irrealismo político. O sucesso do Syriza é produto de uma explosiva mistura de desespero e ilusão. Se o primeiro é da responsabilidade das forças políticas que governaram a Grécia nas últimas décadas, o segundo decorre directamente da retórica demagógica própria de uma formação partidária desprovida de uma cultura de responsabilidade governativa. O resultado, desse ponto de vista, nunca poderia ser muito promissor. Os factos vieram demonstrar a validade dessa prognose. Objectivamente a situação interna da Grécia é hoje bem pior do que aquela que se verificava no início do presente ano. Assistimos a uma impressionante fuga de capitais, a uma deterioração das condições do investimento, a uma quebra da confiança dos agentes económicos com repercussões nas estimativas do crescimento e a um agravamento da crise de todos os serviços públicos. Num primeiro momento, pelo recurso a um discurso propagandístico de exaltação nacionalista com uma tonalidade esquerdista, o governo grego conseguiu sobreviver com escassos estragos a tão paupérrimos resultados. Esse estado de graça não está, porém, destinado a prolongar-se indefinidamente e não será por acaso que todas as sondagens indicam uma esmagadora adesão do povo grego à permanência do seu país na Zona Euro. Em tal opção manifesta-se o gérmen do que poderá vir a constituir uma ampla rejeição de aventureirismos perigosos. Nessa perspectiva poderemos afirmar que o principal erro cometido até agora pelo Syriza foi o da opção pela permanência numa espécie de estado infantil. Tiveram razão quando optaram pelo tabuleiro político, revelaram-se contudo incapazes de alterar substancialmente as regras do jogo. Com uma outra atitude, menos prisioneira de propostas e slogans dogmáticos – como é o caso da insistência numa reestruturação imediata da dívida – poderiam ter criado sérios problemas aos principais decisores do lado das instituições europeias. Tsipras falhou o alvo: apostou em transformar-se numa espécie de anti-Merkel no plano europeu. Com isso seduziu extremistas, entusiasmou ingénuos, suscitou apoios oportunistas mas verdadeiramente não prestou grande serviço nem à Grécia nem à Europa. Um dos seus enganos básicos consistiu em ceder à tentação de transpor para o plano puramente ideológico o que devia ter permanecido no âmbito da discussão política. Hoje pode ser o herói momentâneo de ruidosos manifestantes que nunca viram na política outra coisa que não fosse uma permanente e festiva exaltação da indignação constitutiva das suas boas e angélicas almas. Imagino-os eufóricos e impotentes a verberarem, com prosápia pouco subtil, a sinistra realidade com que têm o infortúnio de se deparar quotidianamente. São tão estrepitosos a gritar quanto inconsequentes a combater.

Por outro lado há que reconhecer que mau grado a evolução verificada nos últimos tempos, sob muitos aspectos positiva, os principais responsáveis políticos europeus têm insistido na promoção de uma linha política que não tem propriamente produzido resultados agradáveis. A insistência na imposição de uma austeridade recessiva revela limitada clarividência política e excessiva reverência ideológica. É certo que a Comissão Europeia vem dando sinais em sentido contrário e que o seu presidente se tem destacado pelo modo como tem procurado construir um caminho alternativo. Juncker foi provavelmente o dirigente europeu que melhor entendeu a necessidade de transferir para o plano político uma discussão que não pode permanecer encarcerada entre a tecnocracia e a ideologia. O seu empenho na tentativa de concretização de um entendimento sério entre as diferentes partes resulta de uma visão que tem vindo progressivamente a projectar no espaço público europeu. O documento que ele próprio e mais quatro presidentes de importantes instituições europeias tornaram público no início desta semana, tendo por tema a necessária reconfiguração da arquitectura da União Económica e Monetária, insere-se precisamente num esforço conducente à reapropriação pela política dos grandes temas da discussão europeia. Como é evidente isso conduzirá ao relançamento do debate à volta do tema do federalismo europeu, o que, aliás, pode constituir o melhor antídoto face ao preocupante crescimento dos extremismos nacionalistas ou classistas que tem marcado os mais recentes actos eleitorais em vários Estados-Membros.

Regressando ao caso grego, não será difícil adivinhar as vantagens que poderiam decorrer de uma significativa alteração do modelo institucional europeu, quer na vertente económica, quer na vertente política. De certa maneira só o surgimento de uma nova consciência política europeia poderá a longo prazo resolver situações tão calamitosas. Sem essa consciência estaremos condenados a observar o lento declínio de um verdadeiro projecto europeu. A Grécia constitui o primeiro momento desse declínio. Outros inevitavelmente se seguirão. Mas não estamos, felizmente, subjugados a qualquer tipo de fatalidade histórica. A história da Europa é em grande parte a história do triunfo da vontade sobre a natureza e sobre os preconceitos.

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