O clássico da crítica de cinema

A tradução portuguesa de Os Filmes da Minha Vida, quarenta anos depois da publicação do original

Foto
François Truffaut na rodagem de A Noite Americana

A tradução portuguesa de Os Filmes da Minha Vida de Truffaut surge quarenta anos depois da publicação do original. Em 2015, é quase impossível fugir à reputação do livro, obra essencial da crítica de cinema e óbvia influência nos escritos de outros autores. Como é o caso de João Bénard da Costa, que roubou o título do mesmo para as suas crónicas n’O Independente nos anos 80. De resto, em 1975, Os Filmes da Minha Vida apresentava-se como um apanhado dos textos de um dos mais célebres críticos do mundo, à altura também já um realizador ilustríssimo (tendo ganho o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro no ano anterior, com A Noite Americana).

Organizado quando Truffaut tinha cerca de quarenta anos, numa época em que a imagem do enfant terrible dos Cahiers du Cinéma havia sido substituída pela do cineasta premiado e prezado, recolhe sobretudo textos a louvar as preferências do autor, pondo de lado as grandes polémicas. “Mas para quê publicar hoje diatribes sobre filmes esquecidos”, escreve na introdução, afirmando preferir “os artigos elogiosos, mais difíceis de escrever, como é evidente, porém mais interessantes com o passar do tempo”. A ausência mais notória é a do famosíssimo Uma certa tendência do cinema francês de 1954, no qual Truffaut vociferava contra os argumentistas Jean Aurenche e Pierre Bost e os realizadores Claude Autant-Lara e Jean Delannoy (entre outros), responsáveis pelo “cinema de qualidade”, demasiado literário, falso e condescendente. Em vez desse, encontra-se até um texto simpático para Ao Longo de Paris de Autant-Lara. Manteve, é certo, alguns exemplos dos “artigos de escárnio” (sobre Le ballon rouge de Albert Lamorisse, ainda assim benevolente), deixando escapar ódios de estimação (David Lean e A Ponte do Rio Kwai), principalmente, em defesa dos seus preferidos. Por exemplo, remete a culpa do insucesso de Lola Montès de Max Ophüls para a produção francesa contemporânea, “filmes feitos à medida para agradar, amaciar e bajular o público”, apontando o dedo a As Diabólicas de Henri-Georges Clouzot e As Grandes Manobras de René Clair.

Como diz na introdução, Truffaut gostava de estar “sempre dos lado dos vaiados contra vaiadores”, não se perdendo, assim, a sua veia de polemista nesta compilação. Colocava-se num lugar à parte dos outros críticos, por não reconhecerem a beleza que lhe parecia incontestável. Zurzia contra o público do Champs Elysées, por não partilhar das suas paixões. O seu amor por certos realizadores – Renoir, Welles, Bergman, Hitchcock – levava-o a hipérboles várias e a não menos tiradas axiomáticas. A propósito deJohnny Guitar de Nicholas Ray e Céu Aberto de Howard Hawks, escreveu “àqueles que recusam ambos”: “nunca mais voltem ao cinema, não tornem a ver filmes, nunca saberão o que é a inspiração, a intuição poética, um enquadramento, um plano, uma ideia, um bom filme, o cinema”. Alguns textos, nomeadamente aqueles em que homenageia actores e actrizes, Bogart, James Dean, Jean Seberg (sob o pretexto de Bom Dia, Tristeza de Otto Preminger), são verdadeiros panegíricos, não se podendo já falar de crítica, antes de uma escrita poética, entusiástica, apaixonada. Por vezes, a escrita é tão íntima que anda à roda do contacto pessoal com um realizador (Roberto Rossellini, de quem foi assistente, é um caso) mais do que sobre a obra deste. Ou, como afirma noutro passo, “fazer a descrição dos filmes equivale a falar de quem os realiza, e o contrário não é menos verdade.”

No prefácio a esta edição, Francisco Valente releva o percurso de Truffaut, a passagem de espectador a crítico, de crítico a cineasta. De facto, a diferença entre os textos dos anos 50 e os posteriores, quando já era realizador, é muito marcada. Nos primeiros, sente-se ainda o jovem que se enfiava nas salas de cinema quando era suposto estar na escola. A crítica é descritiva, não tanto dos enredos mas dos pormenores, os gestos, os olhares, o rosto de uma actriz. Após as primeiras experiências de realização, mostra-se mais atento à técnica, à maneira como se dá a volta a uma situação complicada. “Cheio de humildade”, é talvez mais compreensivo com as falhas dos outros. A crítica torna-se mais analítica, mesmo que não abandone a subjectividade do olhar. Esta viragem tê-lo-á feito mudar de opinião em relação a John Ford, por quem não tinha grande apreço antes, mas reapreciações deste tipo não abundam.

Apesar de o capítulo dedicado aos cineastas da Nouvelle Vague ser algo desinteressante, visto que Truffaut é parte interessada e força o elogio em certas ocasiões, o leitor encontra em Os Filmes da Minha Vida as qualidades prometidas pela sua fama. Palavra final para a tradução de Luís Lima, correctíssima e exaustiva.

 

Sugerir correcção
Comentar