A fugir para a simbologia
Tsai Ming-liang foi criando uma frustrante propensão para a alegoria.
Há outro elemento novo, a infância. Dois miúdos que passam os dias em supermercados e centros comerciais a pescar comida daqui e dali. O pai (Lee Kang-Sheng) é desempregado e alcoólico, vive de um único tipo de biscate, passar os dias (à chuva) a segurar tabuletas publicitárias, sempre inexpressivo, como um manequim inanimado nas ruas de Taipé – excepto quando (noutro dos planos notáveis) a câmara se aproxima dele para o ouvir, longamente, a recitar um poema tradicional sobre a “vergonha da derrota”. E depois há as mulheres, sobretudo a mulher da segunda parte do filme, de estatuto incerto, que pode ser “fantasmático”, e que em qualquer caso cumprem uma função maternal, a função protectora dos miúdos que o pai não tem condições de cumprir.
Embora a força concreta, material, das imagens e dos planos continue intacta – como era nos seus primeiros e melhores filmes, lembremos Vive l’Amour ou O Rio ou The Hole – também é inevitável pensar que com o passar do tempo o cineasta foi criando uma propensão para a possibilidade alegórica ou metafórica, para o cinema entendido como questão de decifração simbólica. A quantidade de perguntas que o espectador se coloca sinaliza bem o pequeno paroxismo que essa propensão aqui atinge, porque no fundo cada vez que o espectador pensa “o que é que isto quer dizer?” afasta-se das imagens em si mesmas para se aproximar de algo que as substitui, a sua interpretação. É nesse sentido que Cães Errantes deixa alguma frustração, como se sentíssemos o filme a fugir para dentro duma estrutura simbólica, mais do que apenas “cifrada”, que podia ser uma descolagem duma visão estritamente “realista” mas acaba por ter o efeito de se apropriar do filme, de lhe cortar o lado imediato e de lhe impor uma mediação interpretativa.
É forte, e visualmente tem momentos tão bons como quaisquer outros de Tsai. Mas resulta num filme um pouco mais ingrato do que o melhor que já lhe vimos.