Magna Carta, Waterloo e a Corrente de Ouro
Nada empiricamente indica que o “despotismo esclarecido” e a revolução tivessem sido necessários para atingir a moderna igualdade perante a lei.
Existirá alguma ligação entre estas duas efemérides, separadas apenas por 600 anos e três dias? A pergunta estará em discussão na 23.ª edição do Estoril Political Forum, dedicada aos 800 anos da Magna Carta, que terá início na próxima segunda-feira. Outras efemérides estarão também em discussão: os já referidos 200 anos de Waterloo, bem como os 70 anos da vitória aliada na II Guerra (8 de Maio de 1945) e os 50 anos da morte de Winston Churchill (24 de Janeiro de 1965).
Um dos caminhos para sugerir uma ligação entre aquelas três primeiras datas foi fornecida por Winston Churchill (que, obviamente, não incluiu a quarta).
O ponto de partida do seu argumento, que recorda Edmund Burke, reside na Magna Carta de 1215. Churchill não lhe atribui uma especificidade inglesa. Considera-a expressão da cultura cristã europeia, de que a Inglaterra era parte integrante (um dos principais redactores da Magna Carta foi o Arcebispo de Canterbury). O princípio central dessa cultura cristã medieval era a limitação do poder pela lei. Como recorda Churchill: “Rex non debet esse sub homine, sed sub Deo et lege — o rei não deve estar abaixo dos homens, mas abaixo de Deus e da lei.”
Embora muitas das limitações ao poder real tenham sido expressas na Magna Carta como privilégios da nobreza e da Igreja, a verdade, argumentou Churchill, é que elas serviram de base a uma gradual ampliação. “Em duas ou três gerações, nenhum estadista prudente pensaria em governar a Inglaterra sem um Parlamento e sem um rei.” E acrescentou: “Parlamento, julgamento por júri, governo local por cidadãos locais, e até os começos de uma imprensa livre, podiam ser vislumbrados, pelo menos em forma primitiva, na época em que Colombo navegou para o continente americano”.
Esta gradual evolução foi abruptamente perturbada em Inglaterra no século XVII, com a guerra civil entre facções inovadoras rivais: os partidários do absolutismo real e os do absolutismo republicano. Só em 1688, na chamada “Gloriosa Revolução”, foi possível restabelecer um equilíbrio que pusesse termo à guerra entre aquelas facções dogmáticas rivais. Esse equilíbrio constitucional do “Rei no Parlamento”, que perdura até hoje, foi prudentemente ancorado na tradição da Magna Carta de 1215.
Esta prudência gradualista foi ignorada em vários países do continente europeu. Em França, o absolutismo inovador de Luís XIV praticamente aniquilou os freios e contrapesos inerentes aos corpos intermédios da nobreza (que perduraram em Inglaterra). Esse poder central ilimitado do rei abriu caminho ao despotismo da revolução francesa e do seu herdeiro: Napoleão.
Churchill era um admirador do génio militar de Napoleão. Mas condenou asperamente a violência revolucionária do imperador, que levou à ocupação militar de quase toda a Europa continental. E elogiou a resistência patriótica portuguesa — que infligiu a primeira séria derrota militar sobre as até então “tropas invencíveis” de Napoleão.
Nesta perspectiva, a derrota final de Napoleão em Waterloo, a 18 de Junho de 1815, foi o epílogo de mais de vinte anos de despotismo revolucionário na Europa — que começara com a revolução francesa de 1789. Que esse despotismo tenha sido exercido em nome do progresso, das “Luzes” e do famoso “Código Civil” nada retira à sua natureza despótica.
E nada empiricamente indica que o “despotismo esclarecido” e a revolução tivessem sido necessários para atingir a moderna igualdade perante a lei. Em Inglaterra, nem o despotismo nem a revolução foram necessários para alcançar a democracia moderna. Em grande parte, porque a Constituição inglesa (não escrita) permaneceu ancorada na tradição da Magna Carta. Churchill resume esse gradualismo britânico na expressão corrente de ouro, a propósito da filosofia política de seu pai:
“[Lord Randolph Churchill] não via razão por que as velhas glórias da Igreja e do Estado, do Rei e do país, não pudessem ser reconciliadas com a democracia moderna; ou por que razão as massas do povo trabalhador não pudessem tornar-se os maiores defensores destas antigas instituições através das quais tinham adquirido as suas liberdades e o seu progresso. É esta união do passado e do presente, da tradição e do progresso, esta corrente de ouro, nunca até agora quebrada, porque nenhuma pressão indevida foi exercida sobre ela, que tem constituído o mérito peculiar e a qualidade soberana da vida nacional inglesa.”