Polónia: “Waitergate” augura novas crises na Europa
O regresso da direita anti-europeia na Polónia voa nas asas de um escândalo.
Defendiam um “Estado forte”, alicerçado na Igreja, na “nação histórica”, na manutenção da ordem tradicional e na crítica do liberalismo do Oeste. Mais prosaicamente, os Kaczinski tentaram apoderar-se do Estado, subordinando a Justiça e os media. Transformaram “a política numa guerra civil permanente” — nas palavras do politólogo Aleksander Smolar. Fabricavam inimigos. No plano externo nomeavam dois: a Rússia e a Alemanha, acusada de diminuir o estatuto da Polónia na Europa. Angela Merkel era associada a Hitler.
O seu partido, Lei e Justiça (PiS) foi apeado nas eleições de 2007. Lech, entretanto eleito Presidente, morreu em 2010 num acidente de aviação. Jaroslaw continuou a dirigir o PiS e a chefiar a oposição.
Desde então, a Polónia foi governada pela Plataforma Cívica (PO, centrista), de Donald Tusk, hoje presidente do Conselho Europeu. Em Setembro passado, Tusk cedeu a chefia do governo a Ewa Kopacz, presidente da Dieta (câmara dos deputados). Radek Sikorski (na foto), que dirigiu os Negócios Estrangeiros durante sete anos, saiu do governo e tornou-se presidente da Dieta.
Em matéria económica, as coisas corriam bem: a Polónia foi o único país da UE a manter o crescimento desde a crise de 2008. Houve uma desaceleração em 2013, que fez cair a popularidade do governo, mas voltou à taxa dos 3,2% em 2014. O desemprego está nos 8,5%. “A Polónia é a success story da economia europeia”, resume uma analista.
No plano internacional, sobretudo com a crise ucraniana, a Polónia reforçou o seu estatuto internacional. Tusk e Sikorski tornaram-se actores de primeiro plano.
A eleição de Duda
Em Maio surgiu a primeira surpresa. Nas eleições presidenciais, um quase desconhecido, Andrzej Duda, apoiado por Kaczinski, derrotou Bronislaw Komorovski, o presidente cessante. As sondagens davam Komorowski como favorito. Segundo os analistas, foi por isso que Kaczinski não concorreu.
Com uma “campanha à americana”, Duda venceu. Apareceu como “o homem da mudança” contra “os velhos actores da política”. Fez campanha com os temas do PiS: reafirmou o seu eurocepticismo, atacou o euro e a UE, advogou a redução dos impostos e a passagem da idade da reforma dos 67 para os 65 anos.
Ewa Kopacz já tinha um problema. As eleições legislativas, para a Dieta e para o Senado, estão previstas para Outubro. A maioria das sondagens favorece a oposição. Na mais recente a PO aparece em terceiro lugar (21%), a seguir ao PiS (24) e ao movimento “anti-sistema” de Pawel Kukiz, uma velha estrela do rock que obteve 20% nas presidenciais graças ao eleitorado jovem.
Escândalo da “treta”
Faltava o escândalo. É um caso que remonta a Junho de 2014. Um tablóide publicou as escutas de conversas privadas de políticos e outras figuras públicas em restaurantes de Varsóvia, regadas com bons vinhos. O governador do Banco Central discutia com o ministro das Finanças a possibilidade de uma nova política monetária ajudar o governo. Sikorski qualificava as garantias de segurança da aliança polaco-americana como uma “treta” e fazia comentários picantes sobre a diplomacia de David Cameron. Outra personagem comparou a aliança polaco-americana a “sexo oral”.
O parlamento chumbou uma moção de desconfiança contra o governo e Tusk mandou fazer um inquérito. Na altura, o Financial Times admitiu que as escutas, com microfone oculto, fossem obra russa para queimar Sikorski. No inquérito, os “criados” dos restaurantes admitiram ter colocado microfones a pedido de “um homem de negócios”. Daí o nome “Waitergate”. Alguns apontam o dedo a um multimilionário que importa carvão da Rússia.
Esta semana o escândalo ressuscitou por outra via. Um blogger ligado a um partido populista colocou na Internet 2.500 páginas do inquérito feito pela Procuradoria — e que tinha sido distribuído aos visados e advogados. O escândalo é agora incontrolável: “O único resultado da longa instrução, que dura há mais de um ano, foi uma gigantesca fuga de informação”, lamentou a primeira-ministra. Os media fustigam “a fraqueza do Estado”.
Em desespero, Ewa Kopacz afastou três ministros e forçou a demissão de Sikorski. “Era um movimento necessário mas é muito tarde”, diz Smolar à AFP. “A primeira-ministra reagiu com precipitação numa situação dramática.” Acrescenta o politólogo Kazimierz Kik: “A PO é um barco que se afunda. É um verdadeiro terramoto mas pode levar à renovação do partido e a uma mobilização para se reconstruir.”
Poderão fazê-lo até ao princípio de Outubro?
“Fuck the EU”
Os políticos desabafam em privado o que não podem dizer em público. Os jornais lembram a frase de Victoria Nuland, subsecretária americana para os Assuntos Europeus e Euroasiáticos, num telefonema ao seu embaixador em Kiev sobre a acção europeia na Ucrânia: “F... a UE.”
Fica a questão: podem políticos como Sikorski pensar que é possível falar “em privado” ao abrigo de ciladas e sem o risco de que o mundo escute?
A previsível viragem à direita da Polónia pode inserir-se no quadro do regresso dos populismos na Europa de Leste, na rejeição das políticas ou das impotências europeias ou na tentação de encerramento das nações sobre si mesmas, fenómeno que os analistas assinalam entre a juventude polaca. Mas, neste caso, entra em acção um daqueles “acidentes” que põem em marcha mecanismos incontroláveis que marcam a História.
Comecei por falar dos Kaczinski para relembrar o passado recente. Entretanto os tempos mudaram e Jaroslaw não poderá repetir as façanhas do passado mas perturbará certamente a UE. Há algo de lunático na sua estratégia europeia: estabelecer uma aliança dos Estados pós-comunistas do Leste para contrabalançar não apenas o peso de Moscovo mas também os de Paris e Berlim. Chamava-lhe outrora “a coligação dos fracos”.
A ascensão de mais uma direita anti-europeia augura novos problemas à UE, a braços com a “frente russa”, em que a Polónia tem um papel central. Quem sabe se Victoria Nuland não terá novas razões para telefonar aos seus embaixadores.