Acção humana está a tornar os ecossistemas cada vez mais iguais
Estudo liderado por portugueses, publicado na revista Science, concluiu que o clima é o único factor que está agora a impedir as espécies de caracóis transportadas pelo homem de se espalharem por toda a Terra.
Durante milhões de anos, a biogeografia foi definindo a evolução das espécies. Nos continentes ou em massas de terra mais pequenas e isoladas, as espécies tinham tempo e espaço para evoluir em contextos próprios. Dessa forma, as “experiências” que saíam de cada região eram únicas. Por isso, em locais como Madagáscar, a Austrália ou a Nova Zelândia existem espécies que não vivem em mais lado nenhum.
O ano de 1500 representa uma mudança. Se até então o transporte de espécies devido à actividade humana existia apenas num contexto regional, a partir dessa altura, com os Descobrimentos, os bens começaram a ser transportados a nível global. E as espécies também. Hoje, os camelos estão no deserto australiano, o lagostim-vermelho-americano infesta os rios portugueses e o cafeeiro – original de África – é plantado na América do Sul.
Mas não se sabe exactamente como é que as novas espécies se organizam nos novos locais. O artigo agora publicado foi analisar a distribuição de 175 espécies de gastrópodes (como caracóis e lesmas), em 56 países e sub-regiões, que, transportados em telhas, plantas vivas, vegetais e frutos, acabaram por se instalar em locais distantes do seu habitat inicial.
“Tentámos perceber como é que um grupo de espécies que foi tão disperso se estava a organizar”, explica ao PÚBLICO César Capinha, investigador do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto, um dos autores do estudo juntamente com Henrique Miguel Pereira, do Centro de Investigação de Biodiversidade Integrada, em Leipzig, na Alemanha, e de cientistas da Áustria e da Alemanha.
Através da junção de informação sobre os habitats actuais destes 175 gastrópodes e dos seus habitats originais antes de 1500, os cientistas puderam comparar como estavam organizadas estas espécies a nível biogeográfico antes e depois da dispersão. Assim, antes de 1500, estas 175 espécies de gastrópodes distribuíam-se por sete grupos biogeográficos no mundo. Alguns mais pequenos com a Austrália ou o Sul de África. Outros maiores como a América Central e do Sul ou a América do Norte e a Europa. Agora, há apenas dois grandes grupos de espécies, um que vive nos climas temperados e outro que vive nos climas tropical e subtropical.
Assim, o clima continua a ser um filtro importante para a colonização de novos habitats. Um caracol adaptado aos trópicos não vai sobreviver a um clima temperado e vice-versa. “As regiões temperadas da América do Norte têm, em média, uma maior proporção de espécies partilhadas com outros locais temperados, mas distantes, como a Europa, a Nova Zelândia, o Sul da Austrália ou a África do Sul do que com regiões próximas, mas subtropicais, como a Florida, o Luisiana, o México ou a Jamaica”, exemplifica-se no artigo.
Os cientistas traduziram estes resultados em quilómetros. Antes, uma espécie nunca se dispersava por uma distância superior a 11.000 quilómetros. Hoje, uma espécie de caracol pode estar em dois locais que distam entre si até 20.000 quilómetros. Os cientistas encontraram ainda alguma ligação entre a dispersão das espécies de gastrópodes e as vias comerciais de bens, por onde os caracóis são inadvertidamente transportados.
Fora da análise ficaram muitas espécies de gastrópodes, em que não há registo de terem viajado devido à actividade humana. Por isso, este estudo não representa a biogeografia de todas as espécies deste grupo de moluscos. Mas, para César Capinha, pode ser um cenário representativo do futuro. “Estamos a avançar para um mundo em que a distribuição das espécies é mediada pela distribuição feita pelos humanos e depois filtrada pelo clima”, diz, explicando que cerca de 1400 espécies de plantas e mais de 100 mamíferos já migraram para outros locais devido ao homem. “O que estamos a fazer é prever a forma [de distribuição das espécies] do futuro, caso isto continue.”
Segundo o cientista, o problema é que estas espécies não nativas acabam por fazer extinguir nos novos locais outras espécies que já lá existiam. “Esta já é considerada a razão mais importante para a extinção”, diz César Capinha, que defende medidas para travar este fenómeno, como “uma rede de informação global de movimentação destas espécies, para sabermos que espécies estão a chegar aos locais e vindas de onde”. Este tipo de informação poderá apoiar nova legislação para lutar contra o problema.