Unknown Mortal Orchestra: "O mundo é sempre estranho e bonito"

Multi-Love é o álbum que reservará definitivamente lugar de destaque para os Unknown Mortal Orchestra. O título é espelho do que foi a vida Ruban Nielson enquanto o gravava. A música, acolhe admiravelmente Sly Stone ou Prince entre a turva luminosidade anterior.

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Nielson continua a gravar no estúdio instalado na cave de sua casa, mas o lo-fi já lá vai, bem como as guitarras, que passam para segundo plano perante o protagonismo dos órgãos, sintetizadores e electrónica. “Comecei a pensar na nova vaga psicadélica e nas bandas nela incluídas. Os elementos funk e as influências da música negra, como Stevie Wonder ou Sly Stone, foram aquilo que nos tornou únicos nesse novo mundo psicadélico, portanto achei que devia apoiar-me nisso e explorá-lo mais que anteriormente”, explicou Nielson ao Ípsilon desde Portland, a cidade americana onde reside, quando Multi-Love aguardava ainda um mês para edição e quando ainda estava razoavelmente distante o início da digressão que, dia 18 de Julho, trará os Unknown Mortal Orchestra ao Super Bock Super Rock, em Lisboa.

Multi-Love é ainda o álbum de um homem à volta com a sua vida e com a música que a sua vida inspira no recolhimento solitário de um estúdio caseiro. Mas é um disco em que os Unknown Mortal Orchestra, que são essencialmente Ruban Nielson, se transformam sem que nada se perca. Puzzles, a despedida, é uma viagem com o McCartney de Abbey Road como ponto de partida e com uma placidez acústica reconfortante como ponto de chegada. No início, ouvimos órgão saltitão com que arranca Multi-Love, seguido pela voz feita intimidade de Nielson e pela pop de uma curiosa luminosidade que se erguerá – olhemos a capa do disco, concentremo-nos nos reflexos púrpura da imagem e teremos boa representação visual da música aqui gravada.

Ao longo do álbum, ouvem-se resquícios de Prince, o pioneiro funk sintético da década de 1980 (Ur life one night), ou, entre pop decorado com cornucópias bem definidas (Stage or screen), um momento em que o groove opiáceo de Sly & The Family Stone surge como inspiração (The world is crowded). Aqui, há inesperados solos de saxofone (cortesia do pai de Ruban, respeitado músico de sessão neo-zelandês) e eis como, em Extreme wealth and casual cruelty, o lixo se revela luxo (“tentarei sempre agir assim: fazer a coisa errada e tentar torná-la a certa”, comentará). Chegamos, por fim, a uma canção como Necessary evil, a penúltima, e, nessa altura, quaisquer dúvidas que subsistissem são postas de lado. Psicadelismo funk minimal, com órgão a fervilhar sobre o balanço carnal da secção rítmica e, quando menos esperamos, o refrão a acolher o sopro elegante do trompete enquanto Burt Bacharach assobia com gosto num distante apartamento nova-iorquino.

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Não, não há dúvidas: com Multi-Love, álbum pop multiforme, caleidoscópico, mas com a imediatez da canção como centro prioritário, revela-se um dos mais interessantes e eficientes compositores rock do nosso tempo. Prova-o o sucesso da transformação operada em Multi-Love. “Queria fazer um álbum diferente, mais alegre, porque o último era particularmente negro”, explica. “Um disco que te fará erguer da cama pela manhã, preparado para tomar de assalto a vida lá fora”.

A carreira dos Unknown Mortal Orchestra é uma história atípica, só possível no mundo actual. Emigrado da Nova Zelândia, onde deixara a banda punk Mint Chicks, para os Estados Unidos, trabalhava como estagiário numa produtora cinematográfica. Por brincadeira, disponibilizou online uma canção, Ffuny ffrends. Inesperadamente, começaram a chover propostas para entrevistas e contractos discográficos na caixa de correio electrónico e Nielson percebeu que, afinal, a música não ficara para trás. O primeiro álbum, homónimo, chegou em 2011. O segundo, II, responsável por colocá-los definitivamente no mapa, foi editado dois anos depois e ainda trauteamos sem culpa, tudo prazer, So good at being in trouble. Multi-Love, gravado durante uma pausa de um ano das digressões (“trabalhava demasiado e sentia-me esgotado”), chega agora e muito mais teremos que trautear – ainda sem culpa alguma, ainda tudo prazer.

Mantém-se a filiação psicadélica. Ruban Nielson não tem medo da expressão. “O psicadelismo baseia-se na ideia de mudarmos interiormente. Fazendo-o, seguir-se-á a mudança no exterior. Neste momento em que se sente uma série de revoluções no ar, o apelo do psicadelismo é oferecer uma versão pacífica de revolução, em que tudo muda radicalmente sem recorrer à insurreição. Leva-nos a aceitar não tomar as coisas por garantidas”, reflecte.

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Quando abordámos o tema que dá título ao álbum, esse Multi-Love que se oferecia para leitura livre, Ruban explicou que a expressão começou a tornar-se companhia recorrente enquanto gravava o álbum. “O que significa Multi-Love? De onde vem? Porque gosto tanto da expressão?”, questiona. “Passado algum tempo, toda a minha vida começou a girar à volta desta ideia. Enquanto gravava o disco, comecei a pensar que podia ser a cura para tudo o que está errado no mundo”. Por aqui ficou. E nós não sabíamos.

Há duas semanas, numa longa reportagem da Pitchfork, revelou a origem dessa crença na salvação do mundo. Casado, pai de dois filhos, Ruban Nielson viveu um ano literalmente extraordinário enquanto gravava Multi-Love. Ruban e a mulher Jenny apaixonaram-se por uma mulher australiana e, durante esse ano, formaram um casal de três pessoas. À Pitchfork definiu a sua vida no período como “um louco sonho incrível” que desejava que durasse para sempre. Disse também o seguinte: “Há um milhão de maneiras de isto correr mal na minha vida – mas não há qualquer hipótese de correr mal artisticamente, desde que mantenha os olhos abertos e que seja corajoso”. Desde essa altura, ouvimos Multi-love, a canção, com outros ouvidos: “Multi-love has got me on my knee/ We were one, then become three/ Mama what have you done to me/ I’m half crazy”.

Não houve qualquer consequência trágica para a vida de Ruban. Continua casado e feliz. O terço australiano do casal anda agora a viajar mundo fora e os Unknown Mortal Orchestra acabam de lançar um álbum que mostra como são capazes de nos surpreenderem da melhor maneira, transformando-se sem comprometerem o que que nos tinha conduzido até eles da primeira vez. “O mundo é sempre estranho e bonito, mas por vezes esquecemo-nos disso”, disse-nos. Fazia sentido antes de ler a entrevista à Pitchfork. Faz ainda mais sentido agora. 

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