O islamismo radical e a Península Ibérica
O mito do Al-Andalus é ensinado em escolas e madraças do mundo islâmico, que sente com carinho e profunda nostalgia esse glorioso passado.
Gilles Kepel, investigador francês daquele tema, escrevia já em 1984 que, "no Egipto, existem associações que lembram regularmente aos seus associados a obrigação de um dia se reconquistar o Al-Andalus". Na década seguinte, o sheik Abdul Azzam, homem com grande influência junto de Bin-Laden, o mentor que o iniciou na teoria e prática do islamismo radical, introduziu na agenda destes movimentos a questão da reconquista e reislamização da Península Ibérica. Mais tarde, a Al-Qaeda, pela voz de Bin Laden e do seu sucessor al-Zawhari, em vídeos apresentados na TV e nas redes sociais, revelaram ao mundo que a Al-Qaeda partilhava também esse objetivo, a concretizar num horizonte temporal indefinido. Agora, com o Estado Islâmico, o auto-proclamado califa al-Bagdadi, vem dizer-nos o mesmo.
Este apetite suscita-nos uma pergunta: porquê querer reconstituir um cenário histórico desaparecido, sobre o qual tantos séculos já passaram? É questão que remete para uma certa perceção — que é a dos ultraconservadores e dos radicais islâmicos — sobre a posse dos territórios conquistados e depois perdidos, tema que importa desenvolver algo mais.
Na verdade, entre os séculos VII e XIII, os árabes foram construindo um império que, na fase final, se estendia da Península Ibérica às portas da China e da índia, concretizando assim a vocação universalista e expansionista desta religião.
Os exegetas dos textos sagrados fundamentam esta ambição de domínio do Universo em dois hadits do Profeta muito conhecidos. (Hadits = ditos de Maomé, ao longo da sua vida de pregação, que constituíam orientações dirigidas aos seus seguidores, no que se reporta à sua vida individual e enquanto membros duma comunidade de crentes. Esses ditos iam sendo registados por apóstolos seus e do total de ditos reunidos resultou a Sunna).
Um dos hadits diz: "Fui enviado à totalidade do género humano" e o outro: "Na verdade, Alá curvou a Terra em minha intenção, permitindo-me ver o Poente e o Levante. O reino da minha comunidade estender-se-á a estas regiões que me foram mostradas".
Desse vasto conjunto de territórios conquistados, alguns foram perdidos no tempo, como aconteceu com a Península que habitamos, onde a ocupação islâmica terminou com a conquista cristã de Granada em 1492.
Talvez com origem nas Escolas de Direito Muçulmano e relativamente a esses territórios, nasceu a tese de que os mesmos têm de ser recuperados um dia, e para tal, é necessário ir alimentando a esperança dos que acreditam nessa utopia.
Como refere Gustavo de Aristegui, autor de La Yahad en Espana, obra onde colhi alguma informação sobre este tema, segundo os defensores daquele argumento, os territórios foram perdidos "porque existiu um retrocesso moral e religioso da parte dos seus governantes e governados" que enfraqueceu a sua capacidade de defesa e conduziu à perda. E a única forma de "recuperar a moralidade e a reta via (uma expressão muito usada nos círculos ultra-conservadores islâmicos) é a reconquista, a reconversão e a purificação".
Mas como foram mais os territórios perdidos, ocorre-me perguntar: e porque é prioritário o Al-Andalus? Admito que o seja pelo Estado e civilização notáveis que os árabes fundaram na Península, para eles uma referência marcante de que muito se orgulham. Recuemos, então, no tempo, para lembrar o que foi criado nesta parte da Europa:
— Pela primeira vez, a Península teve um Estado centralizado, sediado primeiro em Córdova, depois em Sevilha. Constituiu-se como um califado autónomo, o que foi uma de duas exceções na história do Islão, porque sempre houve só um califado para toda a comunidade e esse, à época, era o califado de Bagdad;
— Além disso, num tempo em que o setor principal da economia era a agricultura, os árabes realizaram uma verdadeira revolução agrícola, com a introdução de novas plantas e árvores e processos de irrigação inovadores, que aumentaram grandemente a produção agrícola e a prosperidade geral no território;
— Também no domínio das ciências, da filosofia, das artes e da literatura, os árabes tiveram um papel fundamental. Córdova e Toledo eram centros de acolhimento de estudantes que da Europa ali afluíam; os árabes vangloriam-se de terem sido os introdutores da filosofia grega na Europa, via Al-Andalus, depois de a mesma estar quase esquecida neste continente, onde era cultivada apenas nos conventos. (Os árabes despertaram para a filosofia grega com entusiasmo e iniciaram um movimento de traduções, que se prolongou pelo século IX, em Bagdad, e depois se repercutiu na Europa, pela via anteriormente citada)
— No século IX, Córdova rivalizava com a cidade-mundo de então — Bagdad — (um conceito criado pelo historiador Fernand Braudel, segundo o qual e simplificando, cidade-mundo é a capital do mundo, em cada época) pela sua dimensão, número de habitantes, pelos palácios, mesquitas e uma série de infra-estruturas e equipamentos inovadores, muito antes de Paris e Londres. O Al-Andalus era então a parte mais desenvolvida da Europa, onde uma sociedade multiconfessional integrava muçulmanos, cristãos e judeus, que muitos dizem terem convivido em perfeita harmonia.
— Por último, este conjunto de fatores existia num espaço natural bem diferente dos desertos donde provinham os invasores. A quem atravessava o estreito de Gibraltar deparava-se uma Andaluzia ora montanhosa e verde, na cordilheira Penibética, ora plana e fértil no vale do Guadalquivir.
Nasceu entre os árabes a ideia do Al-Andalus como um Paraíso e a nostalgia do mesmo, um traço distintivo que atravessou o tempo e chegou aos nossos dias.
Mas desta realidade, historicamente comprovada, nasceu também um mito — o mito do Al-Andalus — muito focado na suposta coexistência harmoniosa das três componentes da sociedade de então — muçulmanos, cristãos e judeus — e ao modo como as três comunidades se relacionavam.
Os que fazem esta leitura consideram que, na história do Islão, o Al-Andalus foi o quadro mais representativo de uma convivência tolerante entre as três culturas. Isto seria a prova de que os islâmicos — ao contrário do que muitos afirmam face à realidade atual — são tolerantes e convivem m com as restantes culturas. Nos dias de hoje, sempre que se procura mostrar, que a tolerância é um valor da cultura islâmica, o Al-Andalus é o caso mais citado como exemplo, o símbolo por excelência a evocar.
O mito do Al-Andaluz tem-nos permitido a nós ibéricos, disfrutar de simpatia e de uma imagem positiva em quase todo o mundo islâmico, mas, como refere Aristegui, a emergência dos movimentos radicais trouxe consigo este facto novo: o mito está a transformar-se num instrumento mobilizador da causa jihadista. Como?
Constituindo a reconquista dos territórios perdidos um dos eixos ideológicos centrais do jihadismo, a simpatia que os seus adeptos inicialmente nutriam pelo Al-Andalus transformou-se, no presente, em obsessão, carregada de fanatismo e agressividade. Isso nos mostram o califa al Bagdadi e os seus militantes, bem como os dirigentes doutros movimentos radicais.
Com a disseminação da ideologia islamista, desde os anos 70 do século passado, pelos diferentes países islâmicos, alargou-se também, nos países com grande influência islamista e wahabita, como Gaza, Iémen, Egipto e Arábia Saudita, a ideia de um Al-Andalus a conquistar.
O mito do Al-Andalus é ensinado em escolas e madraças do mundo islâmico, que sente com carinho e profunda nostalgia esse glorioso passado. Em muitas escolas utilizam-se mapas em que grande parte da Península Ibérica aparece pintada de verde (a cor preferida de Maomé, segundo a crença muçulmana), considerando que Portugal e Espanha continuam a ser Dar al-Islam (Terra de Islão). Chega-se ao ponto de se afirmar, como fazem dois autores em determinado livro, que a Reconquista cristã da Península foi o início do colonialismo europeu, o seu ato fundador. Do mesmo modo, nas redes sociais passam imagens de monumentos de Espanha, tendo em primeiro plano a bandeira negra do Estado Islâmico. Por último, em certas mesquitas de Gaza, os imames anunciam aos crentes, a "boa nova" de que um dia o Al-Andalus será resgatado.
Sendo esta uma questão que se relaciona com a Segurança europeia, em particular a da Europa do Sul, suscitou-me a curiosidade de saber como percecionam os governantes ocidentais e os políticos em geral esta tese da reconquista do Al-Andalus. Que conhecimento têm da sua existência?
Não fiz nenhuma recolha de elementos sobre o assunto, mas suspeito que não estejam informados quanto ao mesmo, porque não vejo que os temas islâmicos sejam prioritários na sua cultura política. No entanto, dois, pelo menos, referiram-se a essa ambição jihadista, ainda que brevemente. George Bush, na sua comunicação de despedida de Presidente, quando fazia um balanço dos seus dois mandatos e se pronunciava sobre o dossier segurança, referiu-se à necessidade de combater a Al-Qaeda que, segundo ele, "na sua estratégia incluía a reconquista do Al-Andalus".
Joschka Fischer, antigo ministro alemão dos Negócios Estrangeiros, vai mais longe. Quando Ahmadinejad, como primeiro-ministro do Irão, ameaçava varrer Israel do mapa, Joschka Fischer, numa conferência em Copenhaga, afirmava que "se Israel desaparecesse como país, não tinha dúvidas que o centro de atenção seguinte seria o Al-Andalus". Anos antes, no país islâmico onde estudei o islamismo radical, também li o seguinte: "para os jihadistas, Israel e o Andalus estão no mesmo plano, só que Israel, por ser dos nossos dias, é um problema que deve ser resolvido primeiro. O outro virá depois".
Estes factos não devem ser considerados por nós, ibéricos, com ligeireza. Recusar enfrentar o tema, não é atitude recomendável nos tempos que correm. Pelo menos, e para já, convém saber que ele existe.
Sociólogo