Portugal como destino

Num artigo publicado neste jornal a 24 de Maio (A Crítica como Dever), celebrando os 92 anos de Eduardo Lourenço, Guilherme de Oliveira Martins começava assim o segundo parágrafo: “Na sua análise de Portugal como Destino, Eduardo Lourenço afirma que Garrett e Herculano refundaram a Pátria”. Parece uma frase plenamente consentida pelo subtítulo de O Labirinto da Saudade, que reza assim: Psicanálise Mítica do Destino Português. Na maneira de ler aqui a palavra “destino” reside uma linha que divide duas interpretações completamente diferentes do livro de Eduardo Lourenço. Julgo perceber que Guilherme de Oliveira Martins a leva demasiado a sério. Eu, pelo contrário, acho que o anti-conceito ou contra-conceito de destino (que é o que ele é, de facto, quando Oswald Spengler, em O Declínio do Ocidente, o situa no centro da sua visão da História) está demasiado ligado a uma filosofia anti-iluminista e a manifestações intelectuais de irracionalismo para que se torne verosímil (e desejável) que Eduardo Lourenço o use sem uma forte ironia e, portanto, uma saudável suspeita. Julgo ter lido uma vez numa entrevista — e se não li é como se tivesse lido — que foi buscar esse subtítulo a Antero de Quental: “A nossa história [isto é, a nossa desgraçada história] é o nosso destino”. De facto, para a geração de Antero, o passado funcionava como um destino, no mau sentido da palavra. Lido deste ponto de vista, Eduardo Lourenço não faz “uma análise de Portugal como destino” — o que faria dele, nesse livro, não um “mitólogo” e um historiador da cultura portuguesa, mas um presumido profeta, ou um insuportável poeta. Spengler, ao dar uma definição da indefinibilidade do destino, ao usar esse conceito contra-conceptual (e que, por isso, está do lado do símbolo), exigia que ele fosse compreendido não de modo racional-discursivo, mas de modo poético. Como se sabe, a poesia quando é chamada para estas coisas torna-se muito pouco recomendável e até bastante viscosa. A evocação do destino tem o seu momento glorioso, bem conhecido, quando Napoleão recebeu Goethe, em 1808, e lhe disse: “O destino é a política”. Algo que vai contra o spenglerianismo, para o qual “a verdadeira história está saturada de destino, mas está livre de leis”. E esse destino, como sabemos, é aquele que faz de toda a cultura e da história universal algo que “procede de catástrofe em catástrofe”. O que é interessante verificar é como os anti-conceitos de Spengler exercem ainda uma atracção tão grande, mesmo por quem não é seguidor da “revolução conservadora”, do tempo da República de Weimar, que também está na base da concepção política de Carl Schmitt e de um Ernst Jünger (sobretudo, no seu livro O Trabalhador). Mas quem mandou Eduardo Lourenço dizer que o seu livro era uma “Psicanálise mítica do destino português?”, insinuando que a História é algo que se tem que sofrer e não algo que se decide? O resultado, como sabemos, é um equívoco monumental. Não estou a dizer que o texto de Guilherme de Oliveira Martins participa claramente desse equívoco, mas situa-se na zona de risco. Ou então, aquilo a que chamo aqui “equívoco” é uma interpretação que alguns consideram absolutamente correcta porque está de acordo com a ideologia que perfilham. Tudo o que for feito para mostrar que é ilegítimo empurrar Eduardo Lourenço para essa zona de irracionalismo é um serviço útil e saudável. Não serei certamente o único que não o quer ver como analisador de Portugal como destino.

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