O Brasil “não é para principiantes”

Uma visão de conjunto do Brasil a partir de duas chaves de leitura: a escravatura e o hibridismo

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A herança da escravatura no Brasil traduz-se ainda hoje na persistência de enormes desigualdades sociais e de um racismo silencioso mas perverso: “quem enriquece, quase sempre, embranquece” Miguel Madeira

O Brasil “não é para principiantes”, como dizia Tom Jobim, por isso foi necessário o esforço de duas das mais experientes historiadoras daquele país para escrever uma História do Brasil em 18 capítulos. Claro que existem razões de sobra para se pensar que um tal esforço só foi possível num ambiente intelectual que tem sabido acumular experiências, cruzar disciplinas, passar testemunhos entre gerações e transformar-se num dos meios mais cosmopolitas de produção historiográfica da actualidade. Mais: só num quadro de enorme maturidade se pode conceber que as autoras sejam duas mulheres, entre as muitas e grandes historiadoras que trabalham sobre a História do Brasil.

E qual a interpretação que Lilia Schwarcz e Heloisa Starling propõem da História do Brasil? Trata-se de uma visão de conjunto, mas fora de toda e qualquer ambição de exaustividade. Os ensinamentos e a imaginação do escritor Mário de Andrade, o autor de Macunaíma, foram a esse respeito decisivos. É que, para se “calçar os sapatos do morto” (na expressão de Evaldo Cabral de Melo), ou seja, para ligar as esferas pública e privada, o que conta são as chaves, o método e o enorme controlo sobre as maneiras de narrar a História. Naquilo que se reivindica como uma provocação, a biografia de uma nação, pouco interesse teria a acumulação de factos, e muito menos interesse teria a ambição de esgotar o assunto.

Entre as chaves utilizadas, duas há que sobressaem. A primeira constituída por essa realidade estrutural que é a escravatura. A qual se revela, hoje, no facto de o Brasil poder ser considerado, logo depois da Nigéria, o segundo país do mundo com a maior população africana. Para trás, nos tempos da chamada América portuguesa, ali se fixaram cerca de 40% dos que saíram de África para ir trabalhar nas plantações e minas do Novo Mundo. Ora, esta realidade do tráfico de escravos impôs duas outras marcas profundas no Brasil. Por um lado, a da violência — “fruto da nossa herança escravocrata” — acrescida, ainda por cima, pelo facto de as populações nativas terem sido reduzidas, com o “encontro” de 1500, de um a oito milhões para menos 25 a 95%. Por outro lado, a persistência de uma sociedade baseada no trabalho escravo — a ponto de a abolição só se ter concretizado em 1888 — criou enormes desigualdades sociais e “um racismo silencioso mas igualmente perverso”. Em síntese, “quem enriquece, quase sempre, embranquece”. Assim, as marcas de uma sociedade com uma tão longa experiência de escravidão revelam-se, actualmente, nos minúsculos “quartos de empregada” ou nos elevadores de serviço, para serviçais. E estão igualmente presentes “nas práticas quotidianas de discriminação social e racial ou de culpabilização dos mais pobres, com frequência negros”.

A segunda chave convive com a anterior, muitas vezes sobrepõe-se-lhe, mas geralmente a ela se submete. Nas suas formas mais criativas, mais parece um modo de resistência, assumindo os contornos de uma série de respostas frente aos processos de exclusão social, os quais encontraram sempre o seu espaço na mestiçagem, na ambivalência, e em vários aspectos de natureza híbrida. Assim se entendem manifestações da cultura brasileira tais como a capoeira, o candomblé, o samba, o futebol, a música, a comida e a literatura, nas suas mesclas de cores. Nas palavras das autoras, trata-se de uma parte dessa “história que ambiciona ser mestiça como de muitas maneiras são os brasileiros: apresenta respostas múltiplas e por vezes ambivalentes sobre o país”.

Se na base da biografia do Brasil se encontram tanto a violência como a mestiçagem, o mesmo retrato é composto por outras facetas. Por exemplo, o grande historiador que foi Sérgio Buarque de Holanda falava do “bovarismo” dos brasileiros como “um invencível desencanto em face das (...) condições reais”. Na contra-mão do bovarismo esteve um país que foi permanentemente observado e definido a partir do exterior e, então, representado pelas suas faltas — sem lei, sem fé, nem ordem política — e pelos seus excessos, traduzidos, sobretudo, em formas exacerbadas de sexualidade e explosões festivas.

Depois, havia que contar com o “familismo”, isto é, “o costume arraigado de transformar questões públicas em questões privadas”. Esta última característica esteve, aliás, associada a uma queda das populações para os afectos e emoções. Trata-se da imagem do homem cordial, de novo segundo Sérgio Buarque, afastado e incapaz de adoptar princípios impessoais. Ou, tal como dizia, cerca de 1630, Frei Vicente do Salvador, autor de uma História do Brasil: “Nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”.

No entanto, esta última característica, apesar de tornar difícil, não impediu a luta tenaz na defesa das causas da cidadania, contra a desigualdade social, sobretudo a partir de 1888. A ponto de se poder considerar que, no Brasil, se assistiu mais a lutas pelos “direitos sociais em detrimento dos direitos políticos”; ou, ainda, a uma disjunção entre direitos sociais e políticos que permite a leitura de que “a democracia convive hoje perversamente com a injustiça social”. Tudo isto contra as estruturas de dominação, como o coronelismo, construídas em torno das “relações de favor”. E, conforme sustentam as autoras num post scriptum da última página, as manifestações de Março de 2015 representam, mais uma vez, um inegável envolvimento dos cidadãos brasileiros na defesa dos valores republicanos.

A identificação de todas estas características, enunciadas desde a introdução e reafirmadas ao longo de uma narrativa organizada por períodos e de arquitectura sólida, vai a par de três outras preocupações, reveladoras do método seguido. Primeiro, existe no livro uma preocupação grande em dar voz aos “personagens miúdos, quase anónimos”, aos desclassificados, bem como à “contínua pressão popular e civil” — uma lufada de ar fresco, num panorama historiográfico tal como o português, demasiado preocupado com o papel das suas elites. Depois, o mesmo livro multiplica os casos e apresenta uma selecção cuidadosa de pequenas vignettes, as quais, longe de fugirem às grandes linhas estruturais, nos ajudam a compreendê-las melhor. Por último, apresenta uma criteriosa selecção de imagens devidamente legendadas, com um texto explicativo.

Na cronologia, há pequenos erros e lacunas que edições futuras terão de corrigir. Por exemplo, não se pode dizer que o Infante D. Henrique patrocinou, na década de 1460, o desenvolvimento de técnicas de navegação e cartografia, bem como expedições à Madeira, aos Açores e à costa de África, pois foi precisamente em 1460 que ele morreu. Também não parece justo sustentar que, em 1575, “os portugueses conquistam Angola”; pois foi apenas nessa data que Paulo Dias de Novais desembarcou em Luanda, na sua qualidade de governador geral de Angola. Finalmente, do mesmo modo que a descoberta de ouro é correctamente assinalada em 1697, será de incluir na mesma cronologia algumas datas sobre a descoberta dos diamantes, em Diamantina por exemplo, em 1729. 

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