De que vale a verdade a um homem sozinho?
Da descoberta inicial de águas infectadas que comprometem a economia local, chega-se à conclusão de que são antes os poderes que se encontram infectados. Em O Inimigo do Povo, de Ibsen, encenado por Tonán Quito no São Luiz, as pequenas verdades destapam ou encobrem grandes mentiras.
A costa meridional da Noruega do último quartel do século XIX, onde O Inimigo do Povo tem lugar, não tem tuk tuks nem comércio tradicional a transformar-se em cafés ou lojas de roupa iguais em todo o mundo. “Como não há muito mais a explorar se não aquilo que temos para oferecer, o turismo é obviamente uma salvação”, diz Tonán Quito. E não sabemos já se as palavras do encenador do texto de Henrik Ibsen, escrito em 1882 e em cena no Teatro São Luiz, Lisboa, entre 3 e 17 de Junho, se referem a alguma ligação com o presente português ou apenas à história dessa milagrosa estância balnear em que reside toda a promessa de prosperidade de uma pacata cidade norueguesa.
É inquietante esta constatação de que não há necessidade de tornar contemporânea a escrita de Ibsen. De 1882 a 2015 dir-se-ia que há um salto temporal que não precisa de grande impulso. É um salto tímido, que mal se nota, e não tanto pelas leituras desse turismo elevado à condição de salvador, mas por tudo o que estimula a partir daí. Perante a descoberta de que a estância balnear assenta, afinal, em águas contaminadas, “uma maldita porcaria envenenada”, uma armada de bactérias que é ameaça à saúde pública e, naturalmente, à florescente economia local, o doutor Tomas Stockmann passa a travar uma batalha pela vinda a público da verdade. Com efeitos catastróficos – “Vais arruinar a terra”, avisam-no –, mas a verdade ainda assim. Pode uma cidade realmente prosperar e seguir chamando gente a si quando se equilibra sobre uma mentira e propaga doenças em barda?
“O que acontece nesta peça, com o doutor Stockmann”, defende Tonán Quito, “e o que vamos percebendo, é que não é a água que está infectada, são as próprias pessoas, as mentalidades, o governo, o poder que manipula todo o tipo de informação, esta aliança fatal entre imprensa e poder.” E isto porque a putativa revelação de Stockmann começa por colher o apoio de Hovstad, editor do jornal Mensageiro do Povo, e de Aslaksen, representante da pequena e média burguesia enquanto presidente da Associação dos Pequenos Proprietários dos Imóveis Residenciais e da Associação em Defesa da Temperança. Mas, a partir da descoberta, aquilo que é desencadeado joga-se inteiramente do lado da política e os apoios são medidos não apenas pela justeza da denúncia mas também pelos benefícios de dar um contributo fundamental para que essa denúncia tenha os efeitos pretendidos. Tudo é, no entanto, passível de se alterar pela manipulação do poder local, representado pelo intendente Stockmann, irmão de Tomas, defensor a todo o custo dos interesses dos investidores na estância.
Entrando em cena com as consequências práticas da construção de um novo sistema de captação e distribuição de águas, o intendente imputa esses custos astronómicos à cidade, ao mesmo tempo que alerta para a paragem obrigatória da actividade regular da estância durante um período de dois anos. “As outras cidades aqui das redondezas também dispõem de condições para serem estâncias termais”, anuncia. “Tu não vês que meteriam imediatamente mãos à obra para atraírem todos os forasteiros até si?” Guiado pelas conveniências, o intendente permite-se duvidar da veracidade das análises à água encomendadas pelo irmão. Um alívio, de resto, não poder levá-lo a sério, uma vez que a insistência em tal teoria arruinaria a cidade.
Ao roubar do irmão os instrumentais apoios da burguesia e da imprensa, rendida à “moderação”, o intendente isola o médico a um ponto de descrédito que apenas pode resultar exponencial. “Os indivíduos têm de estar muito blindados para conseguirem levar avante algumas ideias”, reconhece Tonán, “porque têm de percorrer toda uma série de trâmites legais e burocráticos que nem sempre conseguem vencer. O que acontece ao Stockmann é que se revolta contra todos, é escorraçado da sociedade”. Tomas Stockmann, depois de avisar que não quer aumentos salariais nem manifestações públicas em seu louvor, passa de um anunciado futuro herói a um confirmado inimigo do povo.
O homem mais forte
É fácil seguir Tomas Stockmann nas suas louváveis intenções e abominar o intendente enquanto rosto do poder local. Querendo furtar-se ao máximo de quaisquer tentações maniqueístas, Tonán Quito pensou desde início em ter como protagonistas Pedro Gil (médico) e João Pedro Vaz (intendente) – “Tinham de ser duas pessoas que criassem logo empatia, para ficarmos na dúvida”, justifica. “Aquilo que fizemos foi tirar o maniqueísmo, retirar o preto e branco. A burguesia introduziu o cinzento na sociedade de uma forma muito permanente. E é muito mais interessante assim. Se não podíamos ter ido fazer Brecht, que é mais extremado nas posições e muito divertido de fazer e [permite] reconhecer os indivíduos e as personalidades. Aqui, são pessoas com dúvidas e com maneiras de encarar o problema muito diferentes. Nada é tão linear quanto parece.”
Da mesma maneira que Tonán pretende esbater qualquer heroicidade que possa agarrar-se a Tomas, o médico, aquilo a que se assiste é uma cuidada manipulação para o caricaturar e extremar, dizendo o encenador que, por vezes, “a verdade é sobrevalorizada, nomeadamente na nossa vida pessoal e política”. “É o que vemos na peça – aquilo a que a luta pela verdade o conduziu." Há duas verdades em constante batalha em O Inimigo do Povo – uma verdade factual, dos números que constam de um relatório sobre a qualidade das águas, e uma verdade relativa, que permite à cidade não cair em desgraça. Há dois olhares para o bem comum – a saúde acima de tudo ou o bem-estar económico como mandamento maior. A insistência de Tomas, aos poucos, acaba por implicar o seu despedimento, a incapacidade de sustentar a família, valendo-lhe o exemplo de carácter que quer constituir para os filhos (subitamente sem pão para a boca). A utopia progride cada vez mais para uma crença individual, impossível de partilhar com a dita maioria sólida. “O homem mais forte do mundo é aquele que está mais sozinho”, desabafa Tomas.
Ao mesmo tempo que nos fala de verdades, O Inimigo do Povo fala-nos também de mentiras. “A peça está muito armadilhada e é muito ambígua”, reflecte Tonán Quito. Para lá da manipulação do facto simples que estimula toda a narrativa, introduzindo a dúvida na descoberta inicial do médico – a mentira que é uma distorção da verdade, naquele jeito de retórica política que consiste em criar ruído e separar uma parcela a fim de criar uma nova verdade que contradiga a primeira –, há uma outra “mentira” que o texto de Ibsen parece deixar a pairar. E essa mentira é a do poder do indivíduo em democracia. Isolado, por mais que tenha a razão do seu lado, pode ser facilmente esmagado e levado a cair em descrédito. “Assistimos mesmo a este desmanchar de factos, como isto se faz a toda a hora. Essa é a parte desoladora desta peça, ver como se pode destruir alguém numa questão de horas e como se incapacita e se amputa toda a individualidade. Achamos que temos uma função participativa na nossa sociedade e quando começamos a querer agir há uma quantidade de situações e de condicionantes que não deixam avançar e frustram até ao ponto de se desistir. Mas isso é algo que o público pode ver e levar para as suas vidas.”
Sem acasos, Tonán Quito coloca a discussão da cidade dentro do teatro da cidade.