Eduardo Lourenço - a crítica como dever

Eduardo Lourenço assume uma grande originalidade, ao articular as Conferências Democráticas e o Orpheu, os séculos XIX e XX.

Na sua análise de Portugal como Destino, Eduardo Lourenço afirma que Garrett e Herculano refundaram a pátria porque, “pela primeira vez e de uma maneira mais radical do que acontecera nas raras mas fortes crises que pontuaram a nossa história de nação independente, o país esteve em sérios riscos de perecer”. E a verdade é que aparte a revolução liberal de 1834 não houve outra em Portugal. “Inconscientemente” levámos séculos a afastar-nos da “fatalidade” europeia e do seu jogo de forças, mas tivemos de assumir-nos na balança da Europa. De facto, “o tráfico africano, o comércio do Oriente, o açúcar e depois, miraculosamente, o ouro do Brasil” permitiram-nos ter o nosso caminho, enquanto a Espanha esteve a braços com os seus “deveres de potência europeia”. Precisámos, porém, da Europa (França e Inglaterra) para preservar a independência, mas pudemos separar as águas. No entanto, foram faltando as riquezas perenes. Não por acaso, Lourenço fala de fanatismo, e da sua presença entre nós. Recorda a expulsão dos judeus, a sua conversão forçada e a longa presença da Inquisição – contudo acrescenta: “o povo português não é o único a merecer o ápodo de ‘fanático’, se essas generalizações são aceitáveis. Como o bom senso cartesiano, o fanatismo é a coisa mais bem partilhada do mundo”. Todavia, não é certo que uma religião se possa definir pela intolerância e pela exclusão, até porque, em todo o caso, “não é essa a essência do cristianismo. Religião, por excelência da não etnicidade, exclui por definição, toda a incitação ao fanatismo”. Alimentámos no nosso interior dois Portugais – o Portugal velho e o Portugal novo -, numa divisão menos dramática do que a das duas Espanhas. Na busca de uma síntese, Eduardo Lourenço não esquece que fomos, durante muitos séculos, nação-cruzada, mas, apesar disso mesmo, pudemos sabiamente ter uma vivência religiosa flexível, que Oliveira Martins liga ao “imanente paganismo” e Jaime Cortesão ao naturalismo, bem evidente na plasticidade franciscana.

Se fizemos tudo “coletivamente” até aos Descobrimentos, a verdade é que o Romantismo pôs a tónica no indivíduo. Se João de Barros, Camões ou Vieira inscreveram Portugal numa esfera de conteúdo transcendente, Herculano pôs a ênfase na liberdade - “um Portugal que, de armas na mão, se conquistou com liberdade. E é o passado dessa liberdade – quando na sua perspetiva mereceu esse nome – que ele exuma e exalta”. E assim o historiador compreendeu o elo entre os dois Portugais, procurando conciliar liberalismo com cristianismo. E fê-lo “não por oportunismo, como a cultura oficial do constitucionalismo o fará, mas porque tal era a sua visão da história e a exigência do seu individualismo ético”. E Garrett completa esta perspetiva ao pôr Camões no centro da “nova mitologia pátria, pátria de feitos, sem dúvida, mas pátria de canto, de cultura, sem as quais a memória deles não existe”. Mas não há “qualquer profecia com garantia providencial”, o que existe, sim, é vontade e capacidade de regressar ao passado como se fosse presente, relendo os acontecimentos de glórias e viajando na nossa terra, de modo a projetar o futuro. Em vez de D. Sebastião, surge Camões, com os seus sentidos lírico e épico.

A tomada de consciência da decadência deve-se ao facto, detetado por E. Lourenço, de: “em todos os domínios, o regresso à casa lusitana, o confronto connosco próprios, que só por mediação alheia íamos tendo, era vivido sem meio-termo, com deceção ou regeneradora descoberta do nacional, do castiço. Decididamente, a Europa do último quartel do século (XIX), essa Europa de onde esperávamos o messias, em vez de nos estimular, melancolizava-nos ou humilhava-nos simbolicamente”. Ora, a Geração de 70 personificou dramaticamente este desafio, e fê-lo com sentido profético como Quental assumiu na conferência de 1871 sobre “As Causas da Decadência” a condição de nosso primeiro pensador não nacionalista, falando em termos europeus e universais. O ensaísta de “O Labirinto da Saudade”, parte da herança de Herculano e de Garrett, centrando-se na exigência emancipatória da Geração de 70, vista não como um qualquer “vencidismo”, mas como o culto determinado da crítica enquanto fator de liberdade e progresso. Daí a necessidade de compreensão dos mitos – que permitem ir da vontade à evolução. Para Eduardo Lourenço, a Geração de 70 buscou um sentimento universal, notado em Fradique Mendes e depois na galáxia de Fernando Pessoa & Companhia e no modernismo. E é nesta ligação que Eduardo Lourenço assume uma grande originalidade, ao articular as Conferências Democráticas e o Orpheu, os séculos XIX e XX. “A história e o destino de Portugal nunca foram trágicos fora da tragédia adiada que a vida é. Também não o são agora”.

Presidente do Tribunal de Contas

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