Os poemas descontínuos
O livro póstumo de Herberto Helder coloca questões que a sua poesia nunca tinha colocado, ao avançar por caminhos do exercício em tom menor
O livro é breve — 16 poemas, dois dos quais são dísticos — e o título serve de advertência: o leitor, ainda antes de começar a ler, deverá saber que o autor considerou estes poemas não destros, canhestros, desajeitados, e entende que isso terá de ser um pressuposto da sua leitura. É certo que uma tal classificação não evita uma ambiguidade fundamental, à semelhança do que acontece nos pedidos de indulgência dirigidos ao auditório, na retórica clássica : mesmo canhotos, o autor quis que eles fossem publicados e até considerou que o livro estava pronto (esta é, pelo menos, a versão oficial da editora e não há nenhuma razão para suspeitarmos dela). Mas a nomeação destes poemas como “canhotos” obriga-nos a um esforçado exercício de sintonização. Na verdade, a questão da destreza e do seu contrário, remetendo para a dimensão técnico-formal, nunca tinha sido uma questão que a poesia de Herberto Helder nos tivesse obrigado a considerar. Mais do que isso: a palavra poética herbertiana aproximou-se muitas vezes daquela condição de “contra-palavra” de que Celan fala no Meridiano, uma palavra que não se inclina perante “os cavalos de parada” e está para além de todas as maquinações da poesia bem-comportada. Herberto Helder não é um poeta estranho à problemática do métier por ser um intuitivo, como são aqueles que parecem confiar numa espécie de avatar moderno da musa (aproveitando o facto de a noção de métier, em poesia, ter sofrido um grande descrédito), mas porque se elevou a um absolutismo poético.
Ora, alguns dos poemas deste livro oferecem-se como exercícios onde a questão da mestria se iria sempre colocar mesmo que não fosse explicitada, num gesto auto-reflexivo, no interior do próprio poema, como é o caso daquele que abre o livro, um poema em redondilha maior. Começa assim: “coisa amada nas montanhas/ amador ao rés das águas/ por mais que subam as águas/ e arrebatem as montanhas/ e as engulam inteiras/ haverá coroas de pedras/ sustentadas pela espuma”. E, mais à frente, alude-se à regra formal do poema: “coisa amada nas montanhas/ amador ao rés das águas/ a redondilha maior/ é menor que a sua história/ mas maior que tudo isso/ é a dor que o amor transporta”. Há aqui uma óbvia dimensão lúdica, um jogo desencantado e nada jubilante, mas que não deixa por isso de ser um jogo. E no último poema essa característica é ainda mais notória, já que se trata de um poema cheio de rimas em “ão” (muitas delas, internas), que é a mais desqualificada das rimas, na poesia em língua portuguesa, porque é de uma grande facilidade. A isso alude o fim do poema, apontando o dedo a si mesmo: “estes poemas que avançam/ no meio da escuridão/ até não serem mais nada/ que lápis papel e mão/ e esta tremenda atenção/ este nada/ uma cegueira que apaga/ a luz por trás de outra mão/ tudo o que acende e me apaga/ alumiação de mais nada/ que a mão parada/ alumiação então/ de que esta mão me conduz/ por descaminhos de luz/ ao centro da escuridão/ que é fácil a rima em ão/ difícil é ver se a luz/ rima ou não rima com a mão”. Quem imaginaria, há alguns anos (até, pelo menos, A Faca não Corta o Fogo, de 2008) que o último poema de Herberto Helder, deixado à posteridade, seria um poema “canhoto” com rima em “ão”?
Como se perceberá, este livro não é apenas estranho à ideia de “poema contínuo” (como o anterior, A Morte sem Mestre, de 2014, já o era, de outra maneira), é também a afirmação de uma descontinuidade em relação à obra que Herberto Helder foi construindo como uma súmula. É como se o poeta quisesse agora mostrar-se na imperfeição, destituído de toda a apoteose. Assim começa um outro poema deste livro: “em boa verdade houve tempo em que tive uma ou duas artes poéticas,/ agora não tenho nada:/ sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica e traço meia dúzia de linhas:/ às vezes apenas duas ou três linhas;/ outras, vinte ou trinta:/ houve momentos em que fui apanhado neste jogo e cheguei/ a encher umas quantas páginas do caderno/ aconteceu também por vezes que o papel pareceu estremecer,/ mas o mundo, não: nunca senti que o mundo estremecesse/ sob as minhas palavras escritas”. É esta condição de poeta diminuído, canhoto, que já não consegue fazer estremecer o mundo, que se diz nestes poemas. A tragédia, agora, é a pura ausência de trágico, a do poeta que só já pode entregar-se ao jogo da poesia, não como aquela “ocupação mais inocente de todas”, como reclamava Hölderlin numa carta à mãe, mas como a ocupação mais paradoxal de todas: aquela que permite evocar antigas grandezas através de exercícios “canhotos”. É certo que há momentos neste livro que nos fazem aceder a um reconhecível Herberto Helder. Mas, no essencial, ele situa-se noutro espaço diferente, diferente até de A Morte Sem Mestre, na medida em que uma atitude reactiva estendeu-se agora a outros domínios. Este livro reclama do leitor que ele esteja sintonizado num tom mais baixo do que aquele a que Herberto Helder nos habituou.