Nas duas cabeças de Gaspar Noé
Dizem que ele fez o primeiro filme porno em 3D a ser apresentado em Cannes. Ele responde que Love é um filme sobre o amor.
A imagem foi parar ao Twitter, toda a gente pensou que seria o poster oficial do filme (não é) e o realizador de origem argentina diz que se admirou com todo o barulho. “Porquê? É apenas um pénis”.
No seu caderno de intenções para Love estava fazer “um filme sobre o estado amoroso” – e sobre o estado do amor, hoje. Sem plano de transgressão alguma. Mas dizem-lhe agora que ele acaba de fazer o primeiro filme porno em 3D que foi apresentado no Festival de Cannes.
Sobre o festival, responde que o diverte, e se é para deitarem abaixo o filme, antes aqui do que noutro lugar qualquer. Sobre o 3D, depois de tantos movimentos de câmara na anterior longa-metragem Enter the Void – Viagem Alucinante (2009), a brincadeira seguinte não podia continuar por aí, teria de passar por ali – acrescenta, que a brincadeira dá ao filme uma (falsa) pujança de grande orçamento (houve muito pouco dinheiro, segundo ele) e como é falado em inglês até parece Hollywood, mas com sexo explícito. Sobre a pornografia, Gaspar diz que não era isso que o excitava. Querendo fazer um filme sobre o amor, não podia deixar de fazer um filme sobre o sexo, “que é mal representado no cinema”.
E sendo assim, não podia deixar de filmar explicitamente aquilo que, diz ele, faz parte dos momentos jubilatórios da experiência humana e que, misteriosamente, é facilmente apagado da memória das pessoas, que se lembram sempre “do que é mais abstracto, os sentimentos”. E, na conferência de imprensa a seguir à exibição de Love, evocou “Pasolini, Fassbinder, Buñuel”, que já “passaram por aqui”. Não lhe venham por isso falar em transgressão. E não lhe perguntem o que é que é falso ou verdadeiro na interacção entre um rapaz, uma rapariga e outra rapariga em Love. “Há muita coisa que é falsa, há muita coisa que é verdadeira”.
Há muito Gaspar Noé espalhado por Love. Há quem no filme se chame Gaspar, há até quem se chame Noé. A personagem principal, Murphy, quer ser realizador, e tem o quarto forrado a posters de filmes, como obsessivamente teve o cineasta. E é também obcecado pelo 2001- Odisseia no Espaço. Como auto-retrato (“há coisas de mim, dos meus amigos e daquilo que em geral penso que é o ser humano”), o boneco não é bonito: é pusilânime, oportunista, naïve, frágil, este Murphy, um americano em Paris e que dança o tango em Paris e que está sempre a falar no amor e a perguntar pelo sentido da vida mas a responder sempre com a braguilha aberta.
O filme é isso, e também uma infantil patifaria: não resiste ao previsível, ejacular em 3D – Gaspar não pensa só com uma cabeça. Como um porno, até coloca a espaços o espectador no aborrecimento. Mas, com todas as fragilidades e oportunismos o filme expõe as suas imposturas. Expõe-se. E cria de forma obsessiva um sentido de ameaça, trabalha um huis clos onírico, o perigo que está nas relações (Irreversível, de 2002, já era sobretudo isso). Noé verbalizou isso na conferência de imprensa. Disse que ninguém morre em Love ou é ali violentado como no Irreversível. E que ele nunca matou ninguém, mas uma das experiências de dor mais fortes sobre a qual pode falar é a que resulta do que uma pessoa pode fazer, emocionalmente, a outra.