Ópera sob vigilância armada

Já nem a ópera, habituada a vegetar na redoma do apolítico (do falso consenso das elites sobre a “cultura”), pode escapar ao desafio nu e cru da realidade.

Considerada momento culminante da “grande ópera” francesa, A Judia foi estreada com um aparato sem precedentes em Paris (1835). Levava ao excesso a ideia da sucessão de quadros inerente à tradição da “tragédia lírica”. A pompa do poder e os movimentos de massas apoderavam-se do espaço cénico e do tempo musical ao ponto de se imporem como objetos de contemplação em si mesmos e assim exercerem um efeito esmagador sobre o público. O grande tableau prevalecia inteiramente sobre o fluir da ação. Era suposto ser fruído como tal.

Na primeira versão de Scribe (libreto), a ação decorria em Goa e cabia à Inquisição portuguesa o odioso da perseguição aos judeus. Contudo, Halévy, descendente de uma família hebraica da Europa central, situou a ação em Constança, por ocasião do Concílio de 1414. De um lado, a poderosa aliança de Estado e Igreja, à frente duma população inteira de católicos fanáticos, celebrando a vitória sobre os hussitas; do outro, uma família de judeus (pai e filha) não menos fanáticos que os primeiros. No meio, o “herói” católico Leopoldo, que usa duma falsa identidade para seduzir a judia Raquel, apesar de unido pelo “santo sacramento do matrimónio” a uma mulher católica (Eudoxia).

Raquel é disputada por dois tenores: o seu próprio pai (Eleazar), tenor em vez de baixo (ao arrepio das convenções, mas reforçando o seu protagonismo), e Leopoldo. Acaba supliciada, tal como o putativo progenitor. Escolhe o martírio como judia, enquanto o sedutor — dúplice e pusilânime, como esta encenação bem o mostra escolhe salvar a pele à custa da auto-inculpação da amante. Ela morre ignorando que é judia por adoção e que o seu pai biológico é quem ordena o suplício: o Cardeal Brogni (baixo). Eleazar suprema vingança só revela a Brogni a verdade quando Raquel já ferve no caldeirão: La voilà! No final, a multidão católica incorrigível (unbelehrbar, diria o encenador) proclama o seu ódio antissemita.

Konwitschny cortou a abertura. Entra-se logo no Te Deum do primeiro ato, em simetria com a cerimónia pascal hebraica do segundo ato. Vários números foram suprimidos; outros, encurtados. Daí resultou também a eliminação de algumas personagens secundárias. No segundo ato, a cavatina de Eleazar é deslocada para o final e para o proscénio, como monólogo confessional de transição para o terceiro ato.[1]

Com tal reconstrução, concentrada no cerne da ação, que flui impetuosamente, e também com a extensão do espaço cénico à plateia (queda da “quarta parede”), Konwitschny trouxe brechtianamente para primeiro plano, a pretexto duma antiga fábula, a nossa própria atualidade: “o motivo central e global da intolerância”. Não se eliminam da cena assim como não se eliminam da música elementos de cor local religiosa. Mas o que sobressai é o conflito irredutível entre os de mãos azuis e os de mãos amarelas, que serve a quaisquer fundamentalismos adversos. No fim, como na Mãe Coragem (diz o encenador), que cada qual tome posição!

Quando A Judia foi estreada em Lisboa em 1869, cantada em italiano, não se discutiu o assunto. Só se discutiu o tenor. Ainda há quem goste da ópera assim: com nada lá dentro.

[1] Intérpretes da estreia em Gent: A. Grigorian (Raquel), R. Saccà (Eleazar), D. Ulyanov (Brogni), R. Bills (Leopold), N. Chevalier (Eudoxia), T. Girling (Ruggiero). Cenários e figurinos: J. Leiacker. Luz: M. Voss. Coro e Orquestra da Ópera Flamenga. Direção musical: T. Netopil.

Professor Catedrático Jubilado (FCSH-UNL)

Sugerir correcção
Comentar