Portugal fantasiado e em directo no Festival de Cannes
O realizador Miguel Gomes mostrou em Cannes o primeiro de três volumes do seu As Mil e Uma Noites. Cinema de fábula, mutante, que parte de episódios reais que todos podem reconhecer como seus. Continua…
É o tal filme que, com o concurso da “inconsciência de um produtor e da inconsciência dos financiadores”, chega agora à Quinzena dos Realizadores de Cannes, reinventando-se como acontecimento no dia em que Gus Vant Sant e Nanni Moretti apresentaram os seus muito decepcionantes filmes (respectivamente, Sea of Trees e Mia Madre) na competição do festival, a secção que recusou As Mil e uma Noites.
“Inconsciência de um produtor [Luis Urbano, de O Som e a Fúria] e da inconsciência dos financiadores…” Isto era Miguel Gomes a falar no palco do Théâtre Croisette, onde, ao fim de duas horas do primeiro dos três volumes que formam o filme (O Inquieto, O Desolado, O Encantado), foi aconchegado com uma muito determinada salva de palmas.
Pelas reacções que se tornaram explícitas no breve Q&A que se seguiu à exibição, deu para perceber que este filme sobre Portugal, este filme sobre acontecimentos tão reais mas simultaneamente tão “absurdos” e delirantes, de uma “intensidade emocional tão brutal” que, segundo o realizador, só tem equivalente na ficção e nessa proposta da ficção das ficções que é As Mil e uma Noites, ressoará em vários países da Europa. É, neste sentido, um conjunto de episódios que todos podem reconhecer como seus. E que terá fidelizado espectadores para continuarem a seguir Xerazade e as suas histórias nos próximos dias em que os outros dois volumes passarão em Cannes (segunda e quarta-feira): um total de seis horas e um quarto (só quinze minutos se devem aos três – enormes - genéricos juntos).
O realizador não fugiu, portanto. Pode-se acreditar ou não na maior ou menor sinceridade dessa encenação feita no início do filme: o reflexo num vidro a abandonar o campo e a sua equipa, como se não soubesse como continuar depois das imagens chuvosas e sem esperança que documentam o silêncio que se abateu com a crise nos estaleiros navais de Viana do Castelo, onde as chapas pararam de bater – e como continuar, tratando ao mesmo tempo a crise provocada junto dos apicultores por uma praga de vespas asiáticas? Depois é como se Miguel Gomes tivesse sido obrigado a ficar, dando-se a ver ameaçado como Xerazade, que todas as noites tem de contar uma história para não morrer. Pode-se acreditar na maior ou menor sinceridade porque se reconhece este tipo de figuração, de construção de uma persona, este narcisismo que se afirma parecendo querer negar-se, desde Aquele Querido Mês de Agosto (2008), filme já presente na Quinzena dos Realizadores e em que o realizador também aparecia com os elementos da equipa (concretamente, com o seu director de som, Vasco Pimentel) para assumir a sua crise.
Digamos, aliás, que se há um receio, uma inquietação, na parte inicial deste primeiro segmento - precisamente O Inquieto - é que a própria desmesura do projecto e como dominá-la possam ser o tema do filme. Isto sem desprimor para o virtuosismo e para os achados de escrita, de voz e de figuração, como aquela visão de um primeiro-ministro (Rogério Samora) e dos elementos da troika sobre camelos, com a sua responsabilidade social e a fixação da taxa de inflacção a girarem à volta do tamanho dos seus pénis, aumentados devido à poção de um africano – a ministra das Finanças (Maria Ruef), claro, é que não pode gozar dos mesmos efeitos.
Mas depois há o episódio do galo de Resende que tem de ir a tribunal porque não pode continuar a cantar, arriscando-se a ficar sem pescoço - a realidade e a forma como ela se deixa apanhar pelo olhar, começam a ser, efectivamente, mais ricas e o filme mais generoso.
Há um movimento em direcção à gravidade que começa a delinear-se. Como se O Inquieto se fosse despindo da consciência de que é um tour de force e, sobretudo, da necessidade de procurar a superação, como se em vez de se mostrar enquanto projecto, se superasse pura a simplesmente … O episódio final, que mostra o banho do dia 1 de Janeiro dos desempregados de Aveiro, o lento aproximar da câmara em direcção aos depoimentos, disponibilizando-se para corpos doentes não de doença mas de frustração, de raiva, é uma forma de responder à dúvida inicial, real ou construída para efeitos de ficção, sobre a possibilidade da coexistência entre real e delírio em As Mil e uma Noites: pelo menos é uma forma serena, apesar de lidar com matéria de dor, porque não pretende provar possibilidade alguma, espera que ela se revele. É um dos pedaços mais bonitos do cinema de Miguel Gomes.
O realizador anunciou metamorfoses várias para os futuros segmentos. Diz que As Mil e uma Noites é um filme que estará sempre a mudar. Vamos esperar…