A cidade Hazul

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A cidade do Porto tem um novo mapa e é dos mapas mais bonitos que já vi. Colorido, próximo, nosso. Um mapa que mostra a cidade em toda a sua contradição — a ruína e a beleza que dela podem nascer. Não sei se vão encontrar um, porque só se fizeram 500 exemplares, mas corram a apanhá-lo, porque vale mesmo a pena. E, além disso, é um documento que cristaliza a cidade nesta Primavera de 2015, porque é bem provável que, no próximo ano, este mapa já não sirva para nada, porque tudo ou parte do que ele contém terá já desaparecido. O que nos anima é saber que haverá outro mapa, com outras paredes pintadas, outras formas femininas a insinuarem-se em muros sem outra serventia.

O mapa de que falo propõe-nos um passeio pela cidade, sobretudo pelo seu centro histórico, mas não só. Um passeio para fazer devagar e, querendo, ir vendo o Porto dos postais por onde se vai passando, enquanto não se chega ao próximo ponto de paragem. E são 56 os pontos listados neste desdobrável lançado no passado mês de Abril. Cinquenta e seis obras do artista urbano Hazul, que está a cobrir o Porto abandonado de belas figuras femininas de contornos redondos e mantos a envolvê-las ou de criaturas com ar mítico, que desafiam a imaginação. Ou de outros desenhos que não sabemos o que são mas que nos alegram só de olharmos para eles. Não vai muito longe o tempo (mas parece, parece tão longe), em que uma brigada anti-graffiti, recrutada pela câmara de Rui Rio entre voluntariosos e diligentes estudantes, munida de baldes de tinta amarela desbotada, cobria a eito todos os desenhos que cobriam as paredes da cidade. Tags ou obras artísticas não conheciam distinção, perante esta brigada zelosa do balde de tinta uniforme. Nessa altura, há dois anos, foi só há dois anos, Hazul publicou na Internet uma fotografia de uma obra dele a desaparecer, sossegada, sob a tinta amarela. Rui Rio viu-se inundado de críticas e lá disse que, fosse ele a segurar o balde de tinta, e aquela obra não teria sido perdida.

Hoje, o Mapa Hazul Porto 2015 sugere como primeira paragem a imagem que o artista pintou, a convite do actual executivo, na Rua de Alferes Malheiro. Mas essa é apenas uma imagem. Hazul escolhe, sobretudo, espaços abandonados para expor a sua arte efémera. Ele sabe que, renovando-se a cidade, recuperando-se as portas e paredes velhas onde pintou mochos, santas e peixes, as suas pinturas vão desaparecer. Mas, como dizia há dias ao P3, isso não é verdadeiramente um problema, já que, por cada desenho que desaparece, nascem dois ou três. O Porto é velho, medieval, nunca hão-de faltar espaços abandonados a gritar para que reparem neles, para que os usem.

Eu, confesso, fico com pena que uma só destas imagens se perca. É algo doloroso dizer adeus ao mocho (ou será uma coruja?) sobre um céu estrelado da Travessa das Liceiras, àquela mulher-montanha verde da Rua de Ceuta, aos dragões-cavalos-marinhos da Rua de Trás e a todas as mulheres que ocupam hoje portas e paredes na Rua 31 de Janeiro, na Rua das Flores, nas Escadas do Codeçal, na Travessa das Taipas ou na Travessa do Ferraz. Gostava de pegar nelas todas e levá-las para casa, instalá-las numa parede qualquer entre portas.

Só não sei qual escolheria. Aquela imagem colorida de pouco mais que um busto rodeado por flores rosa e amarelas que está no Largo da Maternidade Júlio Dinis? A outra que parece vogar sozinha num barco, na Rua de Miguel Bombarda? Ou aquela transparente, com uma auréola vermelho-sangue da Rua da Victoria?

É bom passear numa cidade sem baldes de tinta amarela-baça. Deixar que o abandono fale connosco, sob a forma de uma esperança que nos diz que é sempre possível transformar uma coisa velha, triste, vazia. Mesmo que seja só por algum tempo. Haja mapas para preservar a memória destes dias em que um canto vazio é uma tela à espera de uma obra artística. Haja muitas meninas redondas e peixes e dragões ou mochos a aparecer por aí.

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