A árvore do viajante
Um belo argumento contra a tese de que o mundo está agreste para a poesia
Nos dias que correm, tão favoráveis à entoação apocalíptica, quem vai atrever-se a discordar de que o mundo está agreste para a poesia? Quem ousará descontrair-se, rejeitar o alarme, abrandar o ritmo e gozar o clima?
De certa maneira, este bem interessante número da revista Relâmpago, organizado por Luís Quintais, é uma bela resposta a favor da distensão. Poesia e viagem é a relação temática que sustenta o dossiê em que todos os ensaios valem bem o tempo de os ler.
Al Berto enquanto autor de O Anjo Mudo é bem revisitado por António Fournier, que, com outros viajantes no espírito (Nicolas Bouvier em particular), nos convence de que este é capaz de ser o melhor ângulo para observar o poeta d’O Medo conjugado com a sua figura de “dandy underground”. Eduardo Sterzi, inteligentíssima voz crítica do Brasil actual, percorre conexões instáveis entre viagem e sentido (ou angústia) da História em Murilo Mendes, particularmente nos livros Contemplação de Ouro Preto(1954), Siciliana (1955) e Tempo Espanhol (1959), revalorizando de caminho a interpretação do poeta brasileiro por Giuseppe Ungaretti, que o traduziu e o consagrou em Itália.
A outra metade deste pequeno arquivo sobre poesia e viagem é de autoria feminina. Joana Matos Frias (bem conhecida professora e investigadora da Universidade do Porto) produz o que bem pode ser uma releitura geral da obra de Ruy Cinatti através das suas formas de vinculação a lugares, a partir de uma hipótese de nomadismo estrutural colhida, curiosamente, em João Gaspar Simões e aplicada desde o tempo dos primeiros livros (Nós não Somos deste Mundo, o primeiro de todos, é de 1941), mas com particular incidência nos que vieram depois d’O Livro do Nómada Meu Amigo, de 1958. Aqui, porém, as ligações entre Cinatti e a literatura inglesa são um instrumento estratégico da ensaísta: Blake, Keats, Shelley, Byron ou os famosos narcisos de Wordsworth (e, portanto, toda a questão da relação entre o poeta romântico e a natureza) estão no centro do argumento conduzido para sustentar a noção de uma “fenomenologia da evidência” que não dispensa a leitura cuidadosa, nos poemas, de uma complementar “retórica da evidência”. O simbólico bucolismo de Cinatti é assim tratado em duplo diálogo com as viagens geográficas e etnográficas do escritor (que deram a outra parte da sua escrita, por exemplo o Vocabulário Indígena de Algumas Plantas Timorenses, de 1954) e com a sua erudita relação com a tradição poética e artística europeia.
Tatiana Faia, que alguns conhecerão melhor como poeta (Lugano, de 2011, foi o seu primeiro livro, editado pela Artefacto), surge aqui na sua qualidade de estudiosa de Literatura Grega, área onde desenvolve investigação depois de se ter formado em Estudos Clássicos pela Universidade de Lisboa. O título do seu ensaio é de citação irresistível: Uma nota sobre professores de Grego, quartos de hotel, viagens de campo, Albânia e a Ilíada. Note-se que, sendo “uma nota”, tem dez páginas de extensão e não menos de 23 notas de rodapé. Nada de errado nisso, pelo contrário. Tudo é interessante e as notas abrem para a história fascinante dos estudos homéricos no século XX, que estão no ponto de partida com a evocação da morte de Milman Parry aos 33 anos de idade, em Los Angeles, no dia 3 de dezembro de 1935, depois de regressado de uma viagem de campo aos Balcãs com o seu assistente Albert Lord.
Parry e Lord recolheram as canções dos guslari na tentativa de imaginar “o tipo de poeta que poderia ter usado uma linguagem semelhante à de Homero” e uma das canções recolhidas tinha de facto a extensão da Odisseia (o arquivo está on-line na Milman Parry Collection, de Harvard). O argumento crítico relativo às origens orais da epopeia homérica é complexo. O efeito desta viagem na filologia e na crítica é revolucionário e determina a própria complexidade da discussão subsequente, a que Tatiana Faia nos inicia com inteligência e clareza. Quem tenha lido o romance de Ismail Kadaré que em Portugal foi traduzido com o título O Dossier H, em 1991, cedo adivinha que é por aí que iremos dar à Albânia. A viagem ficcional dos investigadores que Kadaré inventa é inspirada na viagem de Parry e Lord, mas o ensaio não fica por essa conexão: antes a desvia para uma aproximação final com uma personagem da Ilíada — Lícaon — e a ideia de viagem que a sua história implica. Uma ideia em que as viagens, muito mais do que corresponderem a deslocações no espaço real, “criam novas realidades e geram realidades deslocadas”.
A nossa realidade poética também fica deslocada, além de melhor, com os dois poetas norte-americanos que este tema fez que fossem aqui, creio, pela primeira vez traduzidos em Portugal: Ron Padgett e William Jay Smith, o primeiro nascido em 1942, o segundo em 1918. De Jay Smith, Luís Quintais começa por traduzir o poema A Árvore do Viajante, espécie de incitação à viagem que contém uma boa e indirecta resposta a quem não vê pela frente se não a banalidade burguesa do declínio da poesia: “num dia como esse ao cair da tarde iniciarás a tua viagem”.