Imigração
Lampedusa, a ilha desconhecida
O fotógrafo siciliano Calogero Cammalleri foi para Lampedusa à procura do que está para além do desespero, dos naufrágios e das tragédias no mar.
Quando já estava muito perto da costa da ilha de Lampedusa, o navio Giraffa começou a arder. O capitão decidiu encharcar uma manta com gasóleo e ateou-lhe fogo na tentativa de chamar a atenção da guarda-costeira italiana. Da manta, o fogo alastrou para a madeira da embarcação. Morreram 368 pessoas entre as cerca de 500 que estavam a bordo. Era madrugada do dia 3 de Outubro de 2013.
Os títulos dos noticiários da época classificaram-na como uma das maiores tragédias no Mediterrâneo ou como a maior mortandade em território italiano em tempo de paz. Batalhões de jornalistas e políticos precipitaram-se para a pequena ilha rodeada de águas translúcidas, debitando torrentes de palavras e imagens, num tipo de visita mediática sazonal que se vai fazendo (em maior ou menor escala) ao ritmo dos naufrágios de embarcações carregadas de migrantes que tentam alcançar o sonho do acolhimento na Europa. Na madrugada do último domingo, a história repetiu-se, desta vez com proporções tragicamente muito maiores (terão morrido mais de 800 pessoas nesse acidente, outras 400 tinham morrido na semana anterior). E o circo mediático voltou a erguer a sua tenda.
Há quem trabalhe quando os holofotes estão ligados, mas há quem prefira mover-se quando o circo abandona a cidade. Duas semanas depois da tragédia de 2013, os corpos das vítimas foram enterrados e a atenção mediática desvaneceu-se. Um mês depois, poucos continuaram a dar-lhe relevância, a compreender ou a tentar encontrar soluções para um problema que está longe de ser resolvido.
Uma dessas vozes que quis manter o assunto vivo foi a Fabrica, o centro de comunicação e criatividade sediado em Treviso, que decidiu não arredar pé da ilha. Criou o Sciabica (palavra árabe para rede de pesca), uma iniciativa que tenta contrariar a superficialidade associada ao jornalismo veloz, não só registando e divulgando as histórias dos sobreviventes dos naufrágios como também entrando no mundo dos seis mil habitantes da ilha que nas últimas duas décadas viram o seu quotidiano profundamente abalado e transformado. O site do Sciabica, onde esses depoimentos podem ser vistos, foi o primeiro acto deste trabalho de slow journalism. O segundo foi o livro e a exposição Lipadusa, de Calogero Cammalleri (Agrigento, 1993), imagens que podem ser vistas em Lisboa, até 29 de Abril, no espaço Fabrica da loja de roupa da Benetton, no Chiado.
Cammalleri, um fotógrafo com formação em arquitectura, passou nove meses em Lampedusa. Pouco a pouco, foi conquistando a confiança dos habitantes da ilha, que estão saturados de repórteres e de reportagens (“projecto” é, segundo Cammalleri, uma das palavras que mais odeiam, tal é a quantidade de candidatos a realizar o dito naquela ilha). A ideia era captar o que fica depois do furor, o que se vê e o que se encontra depois do barulho mediático. Para além de conseguir entrar na intimidade e na rotina de uma comunidade que viu a sua terra a ser erguida como bandeira disto e daquilo, Lipadusa é ao mesmo tempo um trabalho delicado sobre a procura de identidade e de pertença (Calogero é um siciliano que emigrou com os pais para a Alemanha quando tinha três anos).
Num estilo livre e sensorial, os vestígios do que resta de autêntico, de selvagem e de rotineiro em Lampedusa vão sendo mostrados sem grande preocupação narrativa, como quem foi registando mais ao sabor das emoções do que do calendário ou da actualidade. Essa conquista dá-nos uma imagem alternativa (a primeira imagem?) de uma comunidade que vive no olho de um furacão. É um trabalho que também procura dizer: “Regressei. Esta é a minha terra e sou um de vós.”