As minorias são "uma ficção terrível"
Conhecido pela forma como escreve sobre a margem e os excessos numa sociedade cosmopolita e multirracial, Hanif Kureishi assumiu a migração como tema literário e político. Numa conversa a partir de Londres, fala das suas opções de risco num percurso feito de cinema, teatro, sexo e droga.
Hanif Kureishi, 60 anos, filho de pai paquistanês e mãe inglesa, o menino mal comportado das letras britânicas que há 30 anos criou um beijo homossexual entre um paquistanês e um skinhead branco no filme A Minha Bela Lavandaria (1985), de Stephen Frears, tímido, provocador, empenhado em fazer da literatura um acto político associado à sua “inevitável e inerente” – para ele é assim – dose de entretenimento, continua a beliscar convenções. Depois do sexo, das drogas, da irreverência urbana e da eterna busca do prazer como algo essencial à existência, foca-se nos preconceitos de raça, nas desigualdades sociais ditadas pela etnia e na imigração como os grandes temas da sua escrita, num momento em que é “preciso estar a tento a movimentos nacionalistas” na Europa. “Já assistimos a isso antes e não foi bonito."
“A literatura e a sociedade olham para o imigrante como um objecto, um boneco, e o discurso público refere-o quase sempre como um zombie num jogo de vídeo. Assistimos ao imigrante a partir do sofá”, sublinha Kureishi, reforçando o significado vazio da palavra, da ideia de migrante em todas as suas variações. Num artigo que assinou em véspera das últimas eleições europeias no jornal britânico The Guardian, intitulado The migrant has no face, status or story ("O migrante não tem cara, estatuto ou história”, numa tradução à letra), Kureishi escreve: “O imigrante tornou-se uma paixão contemporânea na Europa. Um ponto vago à volta do qual as ideias chocam. Facilmente disponível como símbolo, existindo em todo o lado e em lado nenhum, é falado constantemente. Mas, no discurso público corrente, esta figura migrou não apenas de um país para outro, migrou da realidade para a imaginação colectiva onde foi transformado numa ficção terrível.”
No trabalho de Kureishi, o migrante surge enquanto indivíduo com uma história pessoal, um contexto cultural e político, uma biografia com uma data de nascimento e um percurso que, como o de Hanif Kureishi, pode ter começado a 5 de Dezembro de 1954, na cidade de Bromley, a Sul de Londres, então um subúrbio branco, como eram brancos todos os subúrbios em Inglaterra, filho de pai paquistanês e de mãe inglesa, num altura em que o império britânico entrava em declínio, uma década surpreendente, como a classificou o jornalista e escritor Colin MacInnes (1914-1976) na sua colectânea de trabalhos jornalísticos England, Half English. "O que aprendemos, algures, sobre as mães de crianças da classe operária, velhas prostitutas semi-profissionais, os verdadeiros tormentos do amor homossexual e a nova raça dos rapazes de cor nascidos ingleses? Ou (…) que evidências reveladoras temos sobre milhões de adolescentes, sobre os Teds, ou sobre as inumeráveis minorias na Commonwealth – cipriotas, malteses e os muitos milhares de paquistaneses… e sobre a vasta cultura pop?” Sobre estas interrogações, Kureishi escreve na sua autobiografia My Ear at His Heart (2014) que eram uma boa pista para o que estava por vir.
É no território destas afirmações, meio século depois, que o artista Hanif Kureishi se situa. Em Portugal acabam de ter edição simultânea os seus primeiro e último romances. O Buda dos Subúrbios (1990) e A Última Palavra (2013) revelam duas etapas diferentes da vida e da escrita do autor. Uma sátira sobre o crescimento e a vontade de sair dos subúrbios para uma vida com todos os excessos dos anos 70; a reflexão de um velho escritor do início do século XXI obrigado a reviver a sua existência para uma biografia, um retrato tão melancólico quanto amargo, sarcástico e doloroso.
No início há o sexo enquanto elemento libertador, no fim o amor mais profundo a que se pode aspirar. Em todas as etapas, o humor enquanto modo de ver o mundo, e em Kureishi ele pode ser imensamente negro ou cínico. “Não podes errar se começares como cínico”, diz ao seu jovem biógrafo o velho Mamoon Azam, escritor, dramaturgo, mais de 70 anos, natural da Índia, a viver nos subúrbios ingleses, em tempos muito “respeitado pelo muito literário, bem como pelos jornais de direita”, um homem demasiado cerebral, inflexível e angustiante para ser lido por um público amplo”, financeiramente arruinado; nele convivem demasiadas características do Nobel V. S. Naipaul (Trindade e Tobago, 1932), nos seus defeitos e nas suas virtudes, na sua ambivalência, nos mexericos que gera, para que Kureishi negue a inspiração. “Sempre escrevi sobre velhos indianos”, refere, no entanto, nesta conversa que, como o seu livro mais recente, o leva até à condição de escritor e a um percurso de que se destaca a relação tão forte quanto conflituosa com o pai, um aspirante a escritor que falhou nas suas tentativas e que é a figura central da sua autobiografia.
“Não faço da literatura uma catarse pessoal. Deixo isso no privado”, refere, numa alusão rápida à psicoterapia que faz há anos. Se há psicanálise na literatura, é para o leitor. “Com as suas emoções e o seu historial, talvez seja ele a fazer terapia nos livros”, continua agora, tendo a última frase do romance como tópico, a voz de Harry Johnson, o escritor contratado para biografar Mamoon: “Terminara o seu trabalho que era informar as pessoas de que Mamoon contara como artista, que fora um escritor, um criador de mundos, um narrador de verdades importantes e que essa era uma forma de mudar as coisas, de viver bem e de criar liberdade.” Escuta a frase que escreveu e diz que lhe soa como se não tivesse sido ele a escrevê-la. “Mas fui, e não sei se quando a escrevi pensei em mim ou no que quero do meu trabalho. É difícil isso. Eu quero ter alguma substância no que digo, dar alguma profundidade a questões que são tratadas de forma barata pelos media. Vivemos num mundo de informação barata, de opinião barata. A literatura faz parte desse universo onde deve haver substância. Gosto de pensar nela como um meio de veicular ideias importantes. E se há alguma biografia no que escrevo é nisso, na escolha dos temas que me estão mais próximos, que marcaram a minha vida.”
Do subúrbio à cidade
Saiu cedo de Bromley para trabalhar num teatro, o Royal Court. Tinha lido Genet, Plath, Hughes, Larkin. Não durou muito, mas percebeu o que era o trabalho de equipa e gostou e ficou-lhe a noção de que no palco ou na dramaturgia, no teatro, era impossível escapar ao argumento de que a cultura é inevitavelmente política. Acrescenta: a arte é inevitavelmente política. Fugiu do conforto do subúrbio como o adolescente Karim, de O Buda dos Subúrbios, livro que foi adaptado a série pela BBC em 1993. “O meu nome é Karim Amir, e sou inglês de nascimento e criação, ou quase. É frequente considerarem-me um tipo de inglês singular, estranho, uma espécie de raça nova, dado que sou fruto de duas velhas civilizações. Mas estou-me nas tintas para essas catalogações: o que eu sei é que sou inglês (embora não tenha muito orgulho nisso, um inglês dos subúrbios do Sul de Londres e há que dar que falar. Talvez seja a estranha mistura de continentes e de sangues, de coisas de dois mundos, de ser daqui e não ser daqui, que faz de mim uma pessoa inquieta, insatisfeita e que, facilmente, se aborrece.” Escrito em 1990, é um olhar para trás através dessa personagem com quem tem muito em comum, pertencente a uma família que Kureishi retrata de forma bastante sexualizada, um traço que o acompanha a partir desta estreia no romance saudada pela crítica e por nomes como Salman Rushdie, outro inglês/indiano, e que valeu a Hanif Kureishi a zanga pública da sua irmã, que o acusou de usar a intimidade familiar para se promover pessoalmente. O mesmo tipo de acusação viria mais tarde da mãe dos seus dois filhos gémeos, depois de uma separação conturbada.
“Escrevo histórias sobre o mundo em que cresci. Venho da história colonial da India”, diz referindo-se ao pai, herdeiro de uma família rica de Madras, actual Chennai, e de mãe inglesa, uma candidata a pintora que renunciou à arte com o casamento. Também vem de Londres, para onde foi por si mesmo. “Não me sinto particularmente exótico. É uma vida, mas é uma vida representativa, as sociedades passaram de monoculturais a multiculturais, multirraciais, e a literatura reflecte isso. Tive a sorte suficiente de ter nascido à volta desta nova realidade. É um misto de talento e de sorte. Sou um escritor inglês com uma herança da Índia.” Nesse início, a parte oriental interessava-lhe menos; chegou mesmo a desprezá-la, como Karim, porque isso o colocava fora de uma norma qualquer, a ele que era até avesso ao normativo. “Passamos parte da vida a pensar nos nossos pais e no que fizemos com o que eles nos deram, no que isso significou na construção da nossa própria história. Eu queria ser só inglês porque me parecia que ser multirracial era ‘anormal’, era ser excluído. Depois percebi que o mundo me tinha dado essa vantagem e comecei a pensar politicamente na questão.”
É nesta fase que estamos. Ainda que com os temas de sempre. As mulheres, o sexo, a ironia, as minorias, a forma desassombrada como escreve acerca da intimidade como se não houvesse filtro entre pensamento e escrita estabelecem comparações entre os seus romances e os de Philip Roth. Um Philip Roth inglês pós-colonialista. “O Philip Roth também veio de uma comunidade minoritária. Era um judeu de Newark e falava e comportava-se como tal; as suas histórias têm que ver com essa comunidade. Temos isso em comum. E ele escreve muito sobre mulheres e sobre sexualidade, mas não me compete dizer que tipo de escritor sou. Gosto de pensar que sou um escritor à minha maneira muito pessoal”, salienta depois de falar do início, do princípio da escrita. Antes do teatro, do cinema, do romance, houve a pornografia. Romances pornográficos que assinava com o pseudónimo de Antonia French. “Foi nos anos 70, durante um breve período. Eram tempos selvagens. Eu e os meus amigos éramos pobres, alguns eram dealers, havia também prostitutas, e era duro viver em Londres nesses dias. Fazíamos o que podíamos para viver e essa foi a minha contribuição. Durante algum tempo escrevi pornografia, mas era um pouco estúpido. De ler e de escrever. Não é uma forma interessante”, admite a uma distância que lhe permite dizer que a experiência foi “demencial” e o nome de Antonia French lhe surgiu num sonho, porque lhe pareceu “sexy” escrever na perspectiva de uma mulher.
Foi um período de excessos na vida de Hanif Kureishi. Os seus livros e filmes espelham essa passagem que não era incomum. Ele não a vê como tal. Era um leitor, queria ser escritor, pensava em filosofia. Não imaginava que passados mais de 30 anos estaria grato, “muito grato por ter conseguido viver da escrita, ser reconhecido”. Cuida da faceta pública como pode, dá entrevistas, promove os livros, mas diz que a imagem que sai disso lhe escapa, não a controla como muda o percurso de uma personagem num romance, como apimenta o enredo com ironia. “A melhor literatura é cómica”, refere sem hesitar. Tem dito isso em muitas entrevistas, em muitos ensaios. O escritor inglês P. G. Wodehouse (1888-1975), multitalentoso, prolífico e politicamente comprometido, é o autor no topo de uma lista de outros inspiradores. “Os melhores escritores são os escritores cómicos. Joyce é um grande cómico, Dickens, Shakespeare… A vida não é uma paródia, mas podemos divertir-nos com ela.”
Riu-se do pai, ou, como escreve na biografia, preferiu ter uma perspectiva cómica do pai e da florescente New Age da década de 60. Estava na contra-cultura. O pai era o tradicional que ele combatia. Na escrita, esse riso passou para as personagens; quis fazer esse movimento inspirado em Tchékhov, um escritor cómico que criava personagens infelizes. Mamoon é esse homem. Uma das personagens angustiadas de Kureishi que vê o trabalho artístico como fruto de uma espécie de conflito, que descreve A Última Palavra vindo de um editor calculista, outro cínico. Dizia ele que o escritor, como “qualquer verdadeiro artista, era o diabo, rivalizando com Deus na criatividade, tentando ultrapassá-lo": "Deus era, sem dúvida, a criação mais fatal do homem, a puta kitsch do diabo. Era Deus, com a sua insistência em ser adorado e admirado, que tornava necessário o debate sobre a arte, mantendo viva a chama da discórdia nos homens e nas mulheres. Este dissidente era o artista, que abarcava, com a sua imaginação, a razão e a sem-razão, o reverso e o anverso, o sonho e o mundo, homens e mulheres."
A experiência de ler o último e o primeiro romance de Hanif Kureishi permite perceber a evolução e o entusiasmo com que foi recebido na sua estreia. Era disruptivo na forma como escrevia sobre o indivíduo na sua luta por descobrir uma identidade, por afirmar-se na diferença. “De sexo, gostava; tal como as drogas, também o sexo era uma alegria, uma loucura, uma coisa estonteante. Tinha crescido com putos que me ensinaram que o sexo era uma coisa nojenta. Que o sexo era cheiros, obscenidades, embaraços e gargalhadas cavalares. Mas o amor era demasiado forte para mim.” É o jovem Karim em O Buda dos Subúrbios. O velho Mamoon vê o amor como a única coisa que vale a pena perseguir e “a chave é a persistência”. Um e outro são livros políticos, no último a análise dos tempos actuais é feroz, mas não tem o fôlego do primeiro romance. É errático, com alguns momentos embaraçosos, como aqueles em que aparecem os fantasmas da mãe de Harry ou da primeira mulher de Mamoon, e outros muito estimulantes acerca da tarefa do escritor, de denúncia crítica, de reflexão. “Aqui”, refere Mamoon sobre a sua obra, "não se encontram respostas universais, só perguntas universais, aquelas que fazem a literatura”.