Fazer passar os terroristas por loucos evita que se interrogue a sociedade
A história do grupo terrorista Baader-Meinhof contada para os nossos dias. Estado e terrorismo, hoje: é preciso assumir as nossas dúvidas e as contradições, diz Jean-Gabriel Périot, o realizador de um dos grandes filmes do Indie, Une Jeunesse Allemande.
É o filme de uma brutal desilusão. Dizia-se no início: “Apenas acredito na juventude.”
Era uma vez a República Federal da Alemanha (RFA), anos 1960, quando a sua juventude começava de novo, procurava uma possibilidade moral para voltar a contar histórias, fazer filmes. E era uma vez a revolução e o Novo Cinema Alemão. Contra os pais, a Igreja, o patronato, que tinham permitido o nazismo.
Ulrike Marie Meinhof, jornalista, escritora, activista, aparecia na TV, consentindo ainda uma máscara de docilidade no debate público.
Rainer Werner Fassbinder ia ajustando as contas com a mãe nos filmes.
Une Jeunesse Allemande conta como a acção tomou conta das palavras, como a arma substituiu a câmara. “Nós não inventámos a violência, nós reencontrámos a violência”, diz uma jovem guerrilheira. O pequeno filme era uma produção da “indústria da consciência” que florescia nas universidades e escolas de cinema, propaganda revolucionária que não concorria, em termos de visibilidade, com a propaganda do Estado.
E passaram à radicalização.
Ulrike Marie Meinhof: foi presa em 1972, acusada de assassinatos, formação de organização terrorista; morreu no seu isolamento, a cela de Stammheim, Estugarda, em 1976, enforcada – versão oficial.
Em 1977, Andreas Baader e Gudrun Ensslin, condenados a prisão perpétua, suicidavam-se (um tiro ele, enforcamento ela, versão oficial) no auge do confronto entre o Estado e os terroristas (Baader-Meinhof, ou Fracção do Exército Vermelho, chamavam-se): a moeda de troca para conseguir a libertação dos que estavam presos, o rapto do industrial Hanns Martin Schleyer e o sequestro de um avião da Lufthansa, falhara. O Novo Cinema Alemão reagia ao choque. Nesse dia, Outono de 1977, Fassbinder, exausto, confrontava a mãe: “O que te incomoda nos terrorristas é que talvez os possas compreender.”
Une Jeunesse Allemande é um filme sem medo de compreender. Jean-Gabriel Périot esteve oito anos a pesquisar nos arquivos dessa guerra entre Estado e terrorismo: o lirismo revolucionário dos anos 1965-67, o desespero estudantil que levou à radicalização (1967), a retaliação do Estado, que dominou as imagens entre 1970-1977. É um fresco, um épico sem voz off, que permite a intervenção romanesca do espectador ao criar empatia com personagens (ou, evidentemente, desligar-se delas). Mas que fala directamente ao presente. Não há outra hipótese, é preciso fazer algo com as dúvidas, assumi-las, transmiti-las como numa corrida de estafetas.
Há uma altura em Une Jeunesse Allemande - na história dos Baader Meinhof e da República Federal Alemã, esse momento corresponde à fase de retaliação do Estado - em que alguém diz que tentar compreender as motivações dos terroristas é perigoso porque pode equivaler a desculpabilizar a violência. E quase no fim há um excerto do filme em episódios Alemanha no Outono, feito a quente por Alexander Kluge, Rainer Werner Fassbinder, Volker Schlöndorff, em 1977, no momento da morte dos dirigentes da Fracção do Exército Vermelho presos em Stammheim e do assassinato do empresário Hanns Martin Schleyer. No episódio de Fassbinder, o cineasta discute com mãe, diz-lhe que o grande medo dela é que, talvez, ela possa compreender os terroristas. Para quem passou tanto tempo com eles – você – alguma vez se sentiu atemorizado por os compreender?
Penso que não. Pelo menos não senti dessa forma. Pensei muito, em relação às imagens que ia encontrando, sobre o que elas me poderiam dizer sobre eles, porque há uma caixa de segredos sobre essa história. Mas não, nunca me inquietei.
Porque é que a história o interessou?
Estava a fazer pesquisa, interessam-me as questões da militância, da utilização da violência, questões ligadas ao terrorismo face ao Estado, à volta da resistência e das acções que ela desencadeia por parte do Estado. E houve um momento em que me encontrei face à história particular dos Baader Meinhof tal como foi contada na altura através dos media. E foi nessa altura que percebi que era necessário ir procurar as imagens deles, a forma como eles se apresentaram. Tentar estar o mais próximo deles, e dessa forma interrogar essa história de um ponto de vista de cineasta: interrogar a utilização das imagens e fazer uma ligação com o presente. Ou seja, as minhas questões passaram a focalizar-se na história particular deles.
Como espectador podemos sentir-nos próximos das personagens, figuras trágicas. E a palavra é essa: “personagens”...
... sim
Tal como numa ficção em que nos ligamos a uma personagem do ecrã sem danos de maior, porque é “ficção”, aqui podemos também ligar-nos a estas figuras, criando empatia, até que uma voz interior pode dizer-nos: isto aconteceu, eles mataram pessoas. Mas o sopro é o de um épico, com as metamorfoses das personagens. Ulrike Meinhof, por exemplo: a forma como se vai metamorfoseando entre os anos de 1965 e a segunda metade dos anos 70. É impossível que não tenha lidado com essas imagens da mesma maneira que um realizador, numa ficção, gere o arco narrativo e as suas personagens. Ou seja, você ajudou a construir a narrativa Baader Meinhof.
Sim, é verdade. Há imagens que são verdadeiramente documentais, bastou-me integrá-las na cronologia. Isso era suficiente, por exemplo, para a metamorfose aparecer, fisicamente ou no discurso de Ulrike. Onde o filme participa numa construção é quando evidencia que as imagens dos Baader Meinhof são já de si imagens de uma encenação. Quando Meinhof aparecia na televisão, interpretava uma personagem porque era uma forma de se “apresentar”. Talvez que ao dar-me conta disso eu o tenha tornado mais visível. Mas já de si eram imagens “distanciadas”. Gosto muito da sequência da carta de Meinhof, em que ela diz que para ter acesso à palavra tem de aparecer como se fosse um palhaço...
... é incrível: ela diz que se sente obrigada a dar-se a ver ao grande público sempre a sorrir quando estava a falar de assuntos que para ela tinham uma “importância mortal”. Ela não fazia batota, dizia já para onde ia, o que queria fazer; dizia: tenho uma máscara, a verdade é outra.
Mas é então nisso, ao participar nesse trabalho de distância, e de evitar qualquer psicologismo em relação às personagens, que participo na encenação: na enunciação ao público do trabalho deles, na forma como se dirigiram para a violência, para a luta armada. Quero que as pessoas vejam as imagens por aquilo que elas contam mas também quero que vejam a encenação, que as duas coisas apareçam ao mesmo tempo.
As “imagens dos Baader Meinhof” que conhecíamos são as do Estado, uma forma de os objectificar. Num outro sentido, mas com resultados semelhantes, está toda a ficção que tem feito deles anti-heróis chic – por exemplo, Baader (2002), de Christopher Roth. Onde está o seu filme?
Está num lugar o mais próximo possível daquilo que eles queriam mostrar de si mesmos no seu percurso. Tentei falar deles como eles falaram deles. E tentei que o espectador ficasse livre de criar para si as personagens, de pensar sobre elas o que quisesse, deixar tocar-se por elas ou não – em qualquer dos casos, não forçar nem interpretações nem traços de carácter, porque para uns serão sempre heróis e para outros foras-da-lei. Era importante estar o mais próximo da matéria para evitar interpretações que o espectador de hoje pudesse fazer - vê-los com as suas qualidade e defeitos mas sem a-prioris. Oferecer um retrato o mais neutro possível destas pessoas. Eu próprio tentei não ter qualquer julgamento sobre eles, mas tentei um movimento de tocar qualquer coisa deles.
Passou muito tempo com eles. Houve algum desejo de perguntar, e conseguir responder, “quem era Ulrike Meinhof na realidade?”. É possível responder a isto?
É complicado. O que resta são apenas vestígios. É tudo muito parcial. Li muito sobre eles, daquilo que se editou. Falei, evidentemente, com pessoas que foram próximos deles. Mas o retrato será sempre parcial. Somos tocados por eles, tocamos partes deles, mas fundamentalmente conseguimos chegar perto das suas acções jornalísticas, políticas, o que eles quiseram pôr em pática, mas isso é apenas uma faceta deles. Há coisas que nos escapam e que nunca conseguiremos compreender.
O seu filme está sempre a encher-se de ressonâncias em relação ao presente: o terrorismo, o medo, a objectificação/humanização do terrorista, os limites ou não da defesa ou resposta do Estado. São as questões de hoje. Há um momento em que Une Jeunesse Allemande parece querer saltar para o lado do cá. É aquele em que se vê uma bandeira vermelha a ser transportada como numa corrida de estafetas. É como se quisesse que o espectador fizesse algo com esta bandeira - ou seja, com esta história, ou seja, com todas as dúvidas e perguntas. Faz sentido?
Sim, faz. O que me toca no cinema dos anos 60 e 70, e não estou a falar só no cinema de vanguarda, é a crença que tornava muito próxima a arte da vida, capaz de influenciar a crença do espectador. O que se vê nesse cinema é que ele arriscava. Hoje isso desapareceu. O cinema mudou, em todo o caso vivemos numa época despolitizada ou em que já não há essa esperança em relação ao cinema.
A propósito, o excerto das explosões em Zabriskie Point (1970), de Michelangelo Antonioni... é uma intervenção do realizador, é um comentário?
Foi uma forma de estruturar o filme, serve a construção, permite-me abrir ou fechar um capítulo. E é também uma atitude de comentário porque, ao mostrar imagens de um filme contemporâneo da época, estou a mostrar que o apelo à violência era qualquer coisa de generalizada na cultura da época, não era apenas de um grupo de terroristas.
A sua curta Regardant les morts [2011, adaptando o conto de Don deLillo a partir da série October 18, 1977 de Gerhard Richter sobre a “imagerie” Baader Meinhof] já tentava compreender. Aí alguém diz que os terroristas enganaram-se nos actos, mas havia um sentido. Há o equivalente disso neste filme: o tal momento em que Fassbinder discute com a mãe, e lhe diz que eles eram terroristas, tinham morto pessoas, mas o Estado alemão não podia comportar-se com eles como terrorista; é o momento em que a mãe de Fassbinder, que na obra do cineasta sempre representou a acusação à geração dos pais por compromisso com o nazismo, diz que preferia um Estado autoritário, mas bondoso. E o momento de consciência de Une Jeunesse Allemande, não é, aquilo a que se pode esperar chegar depois do turbilhão de emoções e contradições?
Muitos elementos são importantes para mim na forma complexa como Fassbinder questiona a história em curso nessa discussão com a mãe. Para ele trata-se antes de mais de escapar ao binarismo exigido pelos políticos ou pela Fracção do Exército Vermelho. Os políticos, como os militantes da Fracção do Exército Vermelho, exigem uma escolha: connosco ou contra nós; democrata ou terrorista; revolucionário ou fascista... A realidade nunca é assim tão simples e resumi-la em tão pobres oposições é problemático. É preciso sempre pensar o mundo na sua complexidade e nas suas contradições
Fassbinder, nesse excerto, não procura outra coisa senão devolver a complexidade aos acontecimentos do Outono de 1977 face à sua mãe que justamente recusa as dúvidas e as interrogações. Ele não procura tanto encontrar um ponto de equilíbrio quanto colocar quer o Estado alemão quer a Fracção do Exército Vermelho em crise. Ele nunca desculpa os actos mas lembra que esses actos são consequentes, são o culminar de uma lógica política que se pode compreender. Eles agiram de acordo com motivações que se podem partilhar, pelo menos compreender, independentemente de se desaprovar as suas acções violentas. É isso que é problemático: se os terroristas não são loucos, mas indivíduos supostamente equilibrados, a passagem ao acto e a possibilidade que isso descambe na violência questiona, politicamente, a sociedade em que vivem. Pelo contrário, fazer passar os terroristas por idiotas ou loucos evita que se interrogue a sociedade, as suas falhas, os seus limites, os seus problemas, evita que se veja claramente que o terrorismo é consequência da imperfeição das nossas sociedades. É assim que hoje nos propõem que consideremos os terroristas apenas como integristas iluminados e nos proibem de questionar a maneira como os EUA e a Europa agem nos países árabes e africanos ou de questionar o racismo endémico das nossas sociedades pós-coloniais.
Fassbinder indica igualmente que a utilização sensacionalista do terrorismo pelos governos permite que todos aceitemos que leis liberticides sejam votadas depois de cada acção terrorista. Ele critica o facto de sermos tétanisés pela violência terrorista e que abdiquemos demasiado facilmente perante as respostas ultra-securitárias dos políticos. Ao longo desse excerto, Fassbinder tenta que a sua mãe ganhe consciência, a consciência que ela própria abandona, assim como os seus valores, quando se trata de responder ao terrorismo - com a desculpa falaciosa de que se os terroristas não seguem as regras nós também não temos de os tratar de acordo com as regras democráticas. Ela justifica as políticas de excepção, enquanto Fassbinder exige que não nos baixemos ao nível dos nossos adversários.