O tempo ao contrário

Há um relógio especial no British Bar, no Cais do Sodré. Está lá desde sempre. E é uma lição de filosofia.

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Quando o PÚBLICO escolheu o tempo como o tema para celebrar os seus 25 anos, comecei a reparar nos relógios da cidade. Há relógios de todos os géneros. Os absolutamente certos e os atrasados, os parados, os adiantados e até os que são apenas um mostrador vazio, sem ponteiros. Dentro dos cafés e nas fachadas das estações de comboio, os ponteiros movem-se, por toda a cidade, alguns perfeitamente sincronizados, outros ligeiramente desfasados. Contamos o tempo. E, apesar disso, mantemos nas paredes calendários congelados em dias diferentes. Um dia alguém deixou de tirar as folhas e nós nunca saberemos porquê.

No meio disto, há em Lisboa um relógio especial. É uma história mil vezes contada mas quando me pus a reparar nos relógios lembrei-me dele. No British Bar, no Cais do Sodré, há um relógio que anda ao contrário. Os ponteiros movem-se no sentido da rotação da Terra, dizem.

Passei para confirmar que continuava lá. Tinha lido que o bar encerrara para obras mas que os clientes habituais não deviam preocupar-se porque nada mudaria naquele cenário fora do tempo, com as paredes de madeira e os quadros de navios na parede.

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Inaugurou em 1919 com este nome, mas antes disso já havia no local uma Taverna Inglesa. Era todo um pequeno mundo inglês que ali existia no passado, da Livraria Anglo-Americana ao English Bar (estes já desaparecidos), lugares frequentados pelos funcionários das empresas de navegação que tinham os escritórios no Cais do Sodré. Foi também, mais tarde, poiso predilecto de José Cardoso Pires, que no livro Lisboa, Livro de Bordo o descreveu assim: “Tem um sabor a cais sem água à vista, este lugar.”

Mas foi Alain Tanner quem definitivamente o imortalizou, no filme A Cidade Branca, quando pôs Bruno Ganz a conversar com a empregada (Teresa Madruga) sobre aquele estranho relógio que parece andar ao contrário.

O British Bar continua igual a esse dia em que Tanner o filmou. As mesmas portas de saloon, o mesmo balcão de madeira, a meio da tarde algumas pessoas sentadas a beber (e a fumar, que é permitido) comendo tostas mistas.

Em cima de um púlpito, está um livro da casa onde podemos escrever o que nos apetecer. Apenas as primeiras folhas estão escritas. Alguém ocupou uma página inteira a identificar a própria família, com detalhe de nomes, profissões e naturalidades. Noutra página, outro alguém dissertou sobre o tempo, o facto de hoje não termos nunca tempo para nada e corrermos e adiarmos o que queremos fazer para um dia que, quando chega, chega tarde. Uma angústia guardada nas páginas de um livro que talvez alguém, agora ou mais tarde, tenha tempo de abrir e ler.

Escreveu a propósito, ou a despropósito, de tudo isto, ou do contrário de tudo isto, Cardoso Pires: “‘Fazer horas’, dizemos nós quando não temos outra coisa para fazer. Pausa de espera ou vazio imprevisto, para isso há lugares de recurso, que o digam os frequentadores dos bares, por exemplo, mas aí o tempo morto acaba muitas vezes em tempo vivo e pode até deixar de ser de espera. Na verdade, só o bebedor desprevenido acredita em enganar as horas, quando as horas é que nos enganam muitas vezes, contando a passo certo e batido um tempo para lá dos números.”

Lembrei-me, entretanto, de um antigo guia do final dos anos 1990 que tenho guardado na estante. Lisbonne le guide Autrement tem, como outros guias, moradas e indicações de sítios a visitar, de restaurantes onde ir, de locais onde dormir. Mas é sobretudo um conjunto de textos magníficos sobre Lisboa, entre os quais um de Eduardo Lourenço, que começa precisamente com A Cidade Branca de Alain Tanner e esse momento em que Bruno Ganz “olha para lá do balcão e nota que os ponteiros do relógio do bar rodam ao contrário”. É o mesmo momento que volta mais uma vez, saltando de um filme dos anos 1980 para um guia dos anos 90 e, por fim, para um texto que escrevo em 2015. E o tempo anula-se nessa imagem que regressa sempre.

Teresa Madruga, recorda Eduardo Lourenço, diz a Bruno Ganz “que andar ao contrário é uma forma como outras de medir o tempo”. E não é? O relógio do British Bar enganou-nos outra vez. E, como sempre, é ele que está certo.

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