O dia em que a TAP deitou borda fora os accionistas privados
Há 40 anos, as participações dos privados na transportadora aérea foram nacionalizadas. Primeiro, através da banca. Depois, de forma directa. Agora, o Governo quer que o Estado saia da empresa.
Os primeiros passos tinham sido dados semanas antes, com a nacionalização da banca (através de uma lei publicada a 14 de Março) e dos seguros (a 15 de Março). Graças a essas investidas, tomadas após o 11 de Março, o Estado, que já era accionista, passou a controlar 65% da TAP.
No dia 16, quando a investida junto do tecido económico continuou e foram nacionalizadas as empresas dos sectores dos petróleos, energia eléctrica, siderurgia, transportes e navegação, os restantes 35% foram assimilados. Com esta acção, subscrita por personalidades como Álvaro Cunhal, Mário Soares e Mário Murteira, o Estado colocou borda fora diversos accionistas, antigos sócios de outro regime, com destaque para o grupo CUF (detido então por Jorge e José de Mello). O decreto-lei, promulgado pelo então Presidente da República, Francisco Costa Gomes, impõe uma retroactividade de 24 horas na decisão.
Embora o diploma tenha sido publicado a 16 de Março, a companhia dos Transportes Aéreos Portugueses “é declarada nacionalizada com eficácia a contar de 15 de Março” desse ano. Ainda estávamos no Inverno, mas o Verão já se anunciava quente. A viragem à esquerda, embalada pelo 11 de Março, iria durar até 25 de Novembro desse ano.
Foram várias as explicações para a nacionalização: o quase exclusivo da concessão de transporte aéreo nacional da empresa, o elevado volume de vendas e de empregos, as “novas realidades no campo das relações diplomáticas decorrentes do processo revolucionário em curso” e a dependência da TAP “em termos financeiros, do sector público” por via da nacionalização da banca. Os principais grupos financeiros não só eram accionistas, como eram o garante do fluxo de dinheiro para a empresa.
Se a história da TAP começa em 1945, foi oito anos depois que surgiu com a designação tal como a conhecemos, ao transformar-se numa sociedade anónima, e, ao mesmo tempo, ao acolher investidores privados. Nessa altura, empresários como António de Medeiros e Almeida, que comprara a Aero Portuguesa (conhecida como a primeira transportadora regular de aviação em Portugal, fundada em 1934) e a fundira com a TAP (tornando-se então o seu maior accionista privado até sair do capital, em 1960) apostam no desenvolvimento da empresa de aviação. Nesta época, a TAP pouco mais fazia do que ligar Portugal às províncias ultramarinas e a cidades europeias como Madrid, Lisboa e Paris.
Voar para a bolsa
Em 1971, com Angola, Moçambique e Guiné-Bissau em estado de guerra, e numa altura em que a empresa já operava com uma frota de aviões a jacto, dá-se um novo passo: a dispersão de acções em bolsa. Esta é uma etapa pouco conhecida da transportadora aérea, mas confirmada ao PÚBLICO pela Euronext Lisboa: a 21 de Maio desse ano estavam admitidas a negociação no mercado de capitais acções da TAP que valiam 1600 escudos cada (equivalente a oito euros, o que, a valores actuais, seria algo como 409 euros por cada título).
O assunto foi digno de notícia, com a “A Capital” a relatar que os primeiros títulos tinham sido negociados nesse dia e que iria em breve proceder-se a um aumento de capital. Preparava-se ainda um aumento de capital da empresa. Eram os tempos de expansão e do boom das ligações às então Províncias Ultramarinas. Até 1974, os territórios portugueses em África eram responsáveis por mais de 40% do tráfego total de passageiros da TAP.
No entanto, a instabilidade laboral na empresa começa logo em 1973, ano em que os sindicatos exigem uma revisão do Acordo Colectivo do Trabalho (ACT), incluindo aumento salariais. A questão agudiza-se perante um impasse nas negociações, com uma reunião geral dos trabalhadores cancelada à última hora na Voz do Operário e que acabou com uma carga policial. Em Março de 1974, vinte sindicatos entregam nova proposta de revisão ao ACT. No mês seguinte, o Movimento das Forças Armadas depõe o Governo de Marcello Caetano.
A 25 de Abril, encerram diversos serviços, como o aeroporto e a bolsa. O aeroporto reabre dois dias depois, mas a bolsa continuará fechada por muito mais tempo. Se no início de Abril os títulos da TAP valiam dois mil escudos (322 euros a preços actuais), no final desse mês o seu preço estava ligado ao futuro da empresa.
Agindo de forma rápida, logo no dia 2 de Maio uma comissão sindical da TAP entrega um caderno reivindicativo à Junta de Salvação Nacional: exigem saneamentos, a destituição do conselho de administração e a autogestão. As negociações sobre o ACT voltam a estar em cima da mesa. Poucos dias depois, a 8 de Maio, o conselho de administração é substituído por uma comissão administrativa, eleita por trabalhadores e pela Junta, que elege também o presidente. Todos os escolhidos pela Junta são militares e funcionários da TAP, incluindo o presidente, coronel Moura Pinto.
No discurso proferido no refeitório da TAP, Moura Pinto explica que tinham sido escolhidos militares porque estes “dificilmente conseguem invocar argumentos para não cumprir o que se lhes pede ou manda”. Afirmando que a comissão pretendia ver “banido para sempre o conceito de que a administração é a única entidade com capacidade para decidir”, sublinhava que os problemas eram bem conhecidos, pelo que “não é necessário gritá-los”. Por outro lado, admitia um facto: “Nenhum dos membros da comissão possui qualquer experiência administrativa” [in O 25 de Abril e as lutas sociais nas empresas, Edições Afrontamento, 1977]. Além da comissão administrativa, há ainda um conselho de trabalhadores e uma comissão de justiça, além de uma comissão sindical. Nos sindicatos, as diversas forças políticas presentes lutam por influência.
“Ociosos” e “extremistas”
Trinta e cinco dias depois da sua tomada de posse, o presidente da comissão administrativa já fala em “35 noites de pesadelo” e numa luta contra os “medrosos”, os “ociosos”, os “extremistas”. Entretanto, já o salário mínimo na TAP subira para os 5050 escudos (814 euros a preços de hoje) e tinham sido readmitidos os empregados despedidos por motivos políticos ou sem justa causa. A 16 de Julho de 1974, a comissão administrativa anuncia que apresentou a sua demissão à Junta de Salvação Nacional. Justificação: “falta de apoio governamental”; “obstrução das instituições bancárias e de crédito a todas as operações financeiras TAP”; “animosidade e desconfiança dos sindicatos”; “falta de apoio efectivo dos trabalhadores”. “A companhia caminha rapidamente para um abismo donde dificilmente sairá”, defende a comissão administrativa demissionária.
O comunicado é repudiado por muitos trabalhadores, e o tema da autogestão e de maior intervenção dos trabalhadores volta à superfície. Com greves pelo meio, como a dos operários da divisão de manutenção e engenharia, e com desafios como a ponte área (a maior operação da TAP), de modo a trazer para o território nacional os portugueses presentes em África, a situação financeira da empresa era pouco famosa. As exigências salariais tinham custos elevados (havia quase 9000 funcionários), o tráfego de passageiros sofria uma forte quebra, a inflação disparava e o custo do combustível estava historicamente elevado desde 1973. Além disso, muitos depósitos da TAP tinham ficado retidos em Angola e Moçambique, e existiam diversos pagamentos em falta. A Petrogal servia de apoio, mas havia uma factura a pagar, mais cedo ou mais tarde.
Com a nacionalização da transportadora aérea, em Abril de 75, a derrapagem financeira fica disfarçada, mas continua. Em 1976, o Estado avança com a primeira aplicação de capital, e muitos outros subsídios se irão seguir.
Hoje, a impossibilidade de injectar dinheiro na TAP é o principal argumento do Governo para voltar a incluir capital privado na transportadora. Para já, se tudo correr como deseja o executivo, serão alienados 66% do capital da empresa antes das legislativas. Destes, 5% serão para os trabalhadores (com direito a desconto). Mas a ideia é que o Estado saia por completo da transportadora aérea. A diferença face ao passado é que, se assim for, não só o Estado passa de omnipresente a ausente, como, muito provavelmente, o capital privado não será de investidores portugueses.