Ashley foi espancada, violada e acusada de “fingir ser uma mulher”

A Justiça da Georgia, nos Estados Unidos, enviou para alas masculinas de prisões uma mulher transgénero e recusa dar-lhe a medicação hormonal que tomava há 17 anos. Governo federal fala em violação da Constituição. Debate-se o direito da população LGBT.

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A denúncia das agressões valeram à reclusa estadias na solitária DAVID MDZINARISHVILI/REUTERS

O caso diz respeito à experiência penitenciária de Ashley Diamond, que foi detida em 2012, com 33 anos, condenada a uma pena máxima de 11 anos de prisão pelos crimes de roubo e falsificação. Ashley, que desde a adolescência se identifica como mulher, diz que está a ser ilegalmente impedida pelos serviços penitenciários de continuar a terapia hormonal que iniciou há 17 anos, num processo de transição de género.

A queixa alega que, ao reter essa medicação específica (estrogénio, progestinas, bloqueadores de testosterona e outros esteróides anti-androgénicos), a direcção dos serviços prisionais violou a legislação que garante aos reclusos a manutenção dos tratamentos que seguiam em liberdade, e que obriga à assistência de todas as condições médicas diagnosticadas dentro da prisão.


Ashley Diamond antes de entrar na prisão e agora

E essa não é a única queixa. Numa reportagem sobre o caso de Ashley Diamond, o jornal The New York Times enumera muitos outros “desafios” e “dificuldades” que a reclusa enfrenta desde a entrada na prisão – sempre na ala masculina de unidades de alta-segurança destinadas a albergar criminosos violentos. Em menos de três anos, Ashley foi repetidamente agredida, foi exposta para que outros reclusos pudessem masturbar-se à sua frente, foi violada sete vezes (quase sempre em grupo) e foi atirada para o regime solitário por “fingir que é uma mulher”.

Mas Ashley (esse é o seu nome de baptismo) não estava a fingir. Diamond deixou para trás a sua identidade masculina ainda na infância – os seus vizinhos já a tratavam “como uma menina” desde os seus seis anos – e iniciou terapia hormonal para mudar de sexo aos 17 anos. Esse processo levou a família, conservadora, a expulsá-la de casa. Ashley foi acolhida por um amigo gay, o designer de interiores Charles Neal Sumlin, que também fugira de casa para escapar a um ambiente opressivo e homofóbico.

Durante alguns anos, manteve uma carreira profissional de “transformista de cabaret” (no auge da sua fama, interpretava a cantora norte-americana Whitney Houston), mas quando quis afastar-se da vida nocturna debateu-se com as dificuldades em encontrar emprego. Um relacionamento amoroso levou-a ao mundo das drogas e da pequena criminalidade: foi pela acumulação de condenações por delitos menores, e a violação de uma pena suspensa, que acabou por receber uma pena de prisão entre oito e 11 anos.

Os crimes por que foi acusada e condenada foram, nas palavras da juíza que confirmou a sentença, “crimes de sobrevivência”: tinha roubado um cheque ao seu amigo Sumlin, que mesmo assim não apresentou queixa, e foi detida a vasculhar caixotes do lixo, à procura de recibos e cupões de desconto. “Quando ultrapassar esta fase, aconselho-a a mudar-se para um lugar que aceite melhor a sua identidade, onde possa encontrar um emprego e não tenha de roubar ou falsificar assinaturas para sobreviver”, disse a juíza Tambra Colston, na sessão do tribunal.

Como escreve o diário nova-iorquino, o “ciclo de desfeminização deliberada” de Ashley começou imediatamente após a entrada no sistema prisional: na fase de processamento, em que é feita uma avaliação individual, os serviços recusaram registá-la como uma mulher transgénero, inviabilizando dessa forma o acesso à terapia hormonal. E não foi só a sua transição física que ficou comprometida com essa decisão: a reclusa foi ainda proibida de se identificar como mulher ou de usar vestuário feminino. E foi enviada para uma ala masculina, apesar dos “factores de risco”.

“À entrada eu expliquei que sou transgénero, o que quer dizer que sou uma mulher. Mas para eles, eu sou homossexual. Disseram-me que eu era maricas – e eu respondi, tudo bem, sou maricas, então ponham-me na ala dos maricas para eu ficar em segurança”, recordou Ashley numa entrevista telefónica com o NYT. No primeiro mês na prisão, Ashley foi brutalmente atacada, espancada até ficar inconsciente, e violada por seis membros de um gangue.

Em resultado da agressão, foi transferida para outro estabelecimento de alta-segurança, novamente colocada com outros condenados considerados violentos. As agressões, abusos e violações repetiram-se. Ashley denunciou-as, mas isso só lhe garantiu estadias na solitária. O processo contra os serviços prisionais da Georgia, patrocinado pelo Southern Poverty Law Center, valeu-lhe nova transferência, para a prisão estadual com o maior número de ataques sexuais do país.

Numa declaração de interesse que foi apensa ao processo, o Departamento de Justiça norte-americano não tem dúvidas em classificar o tratamento da reclusa como “inconstitucional” e a defender o seu direito à terapia hormonal. Segundo argumentou, os serviços prisionais têm a obrigação de facultar o tratamento para o seu diagnóstico de disforia de género – uma condição que afecta os indivíduos que experimentam uma desconexão entre o sexo com que nasceram e o género com que se identificam – exactamente nos mesmos termos em que dispensam a medicação necessária para qualquer outra condição médica, física ou mental. O documento recorda que a oitava emenda constitucional consagra o direito de todos os reclusos a cuidados médicos individuais.

“As reclusas transgénero têm direito a receber o tratamento médico adequado, têm o direito à protecção da violência e abuso. Estes são direitos consagrados na Constituição, como veio reconhecer o Departamento de Justiça”, sublinhou a representante do Southern Poverty Law Center, Chinyere Ezie, que assegura a defesa de Ashley Diamond.

Privado das hormonas, o organismo de Ashley Diamond começou a reverter para o seu estado masculino original, contribuindo para o quadro de angústia mental, depressão e que já a levou a tentar a castração e o suicídio. “A preocupação imediata é que ela consiga sobreviver ao cumprimento da pena”, assegurava Stephen Sloan, um dos conselheiros da prisão de Baldwin que tratou o seu caso.

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