Naquele tempo... Não! Hoje
Esta semana será santa se as vítimas da dominação económica, política, religiosa e de qualquer discriminação forem o nosso cuidado afectivo.
É verdade que essa obra já está muito longe das últimas vagas de reconstruções históricas das origens do cristianismo, nascido no mundo judaico e greco-romano no Ano I, um dos mais importantes da História universal.
Foi em referência a Jesus de Nazaré que surgiu o movimento religioso mais significativo do Ocidente e provavelmente o de maior influência cultural e social do mundo. Isto, apesar dos crimes anticristãos que, em seu nome, foram cometidos.
Segundo o historiador Antonio Piñero, tanto entre os judeus como entre os gentios de há dois mil anos, havia uma grande aspiração a que o mundo mudasse de signo, como se pode ler nos oráculos de Sibila: com o menino que vai nascer concluir-se-á finalmente a época de ferro e nascerá, por todo o mundo, a idade doirada...
Os seguidores do Nazareno interpretaram, com eficácia, esses “sinais dos tempos”.
É urgente perceber que o rumo do mundo actual, com tantos recursos científicos e técnicos, facilmente globalizáveis, carece de lideranças que o pensem a partir dos que foram e são os mais sacrificados aos imperativos da idolatria do dinheiro, rei e senhor.
2. Estive a ler, comovido, os discursos do Papa Francisco, em Nápoles, seguindo o roteiro do seu percurso. Na sua espantosa arte de escutar, nas suas palavras, gestos e atitudes verifico que o seu Jesus é nosso contemporâneo.
É verdade que o dominicano S. Tomás de Aquino (1225-1274) defendeu, com excelentes razões teológicas, que a eficácia salvadora, transformante, da intervenção histórica de Jesus, de há dois mil anos, atinge todos os tempos e lugares. O monge beneditino alemão, Odo Casel (1886-1948), morreu a cantar o Exultet, um hino muito belo da Vigília Pascal, na célebre abadia de Maria-Laach. Depois de ter defendido, contra ventos e marés, a convicção de que ao celebrar o mistério do culto cristão estamos sempre envolvidos pela presença misteriosa, actual e actuante da morte e da ressurreição de Cristo, entrou no reino da luz. Não se nega a memória. É, todavia, o presente, cheio de futuro, o que mais importa.
Mas então, o que haverá de novo na intervenção de Bergoglio para nos sugerir, nas formas mais surpreendentes, que o tempo e a geografia de Jesus são hoje, seja numa prisão, num hospital, em Nápoles, em Lampedusa, na Turquia, num bairro de lata em Roma ou no Parlamento Europeu?
Diria o seguinte: os teólogos bons e os bons liturgos pensam e celebram, com consciência, a absoluta transcendência de Deus conhecido como desconhecido. Trabalham, de forma brilhante, ideias brilhantes.
Francisco segue outro caminho: não defende apenas que a teologia, a liturgia, a pregação, a catequese, a pastoral devem cheirar a povo e a rua. Não traz apenas para o nosso tempo o que aconteceu naquele tempo, na história de Jesus, interpretada pelos escritos do Novo Testamento nem faz aplicações moralizantes desses textos fantásticos, muito desconhecidos do povo católico. Faz outra coisa: recria, com uma espantosa imaginação, as narrativas de antigamente com histórias e realidades dos pobres, dos doentes, dos desempregados, jovens e adultos de hoje, a quem roubam o presente e a todos roubam a dignidade, reduzindo os idosos a produtos descartáveis e sobrantes.
Prefiro dar-lhe a palavra: “A situação de Nápoles não é só uma responsabilidade da cidade, nem somente do país, mas do mundo! Porquê? Porque há um sistema económico que descarta o povo e agora toca aos jovens serem descartados, sem trabalho e isso é grave!
Diz-se que há obras de caridade, há os voluntários, há a Cáritas, há aquele centro, há aquele clube que dá de comer...”
O problema, diz Bergoglio, não é ter de comer, por esmola. “O problema mais grave é não ter a possibilidade de levar o pão para casa, de o ganhar! E quando não se ganha o pão, perde-se a dignidade. Esta falta de trabalho rouba-nos a dignidade. Devemos lutar por isso, devemos defender a nossa dignidade de cidadãos, de homens e mulheres, de jovens. Este é o drama do nosso tempo. Não devemos permanecer em silêncio.”
Hoje, Domingo de Ramos, começa a Grande Semana – a da esperança invencível – e dedicada, pela liturgia católica, a evocar a condenação à morte, por crucifixão, de Jesus de Nazaré. Pelo que consta, isto aconteceu devido a interesses político-religiosos, provavelmente, no dia 7 de Abril do ano 30, véspera do grande dia da Páscoa judaica.
Cristo não morre mais. Esta semana será santa se as vítimas da dominação económica, política, religiosa e de qualquer discriminação forem o nosso cuidado afectivo, orante, político. “Ao tocar nas feridas do mundo, tocamos em Deus” (T. Halík).