Aprender com os alemães
Uma concepção muito conservadora da história faz com que se tenham perdido, desaparecido, destruído e dispersado muitos materiais, por exemplo, posteriores ao 25 de Abril.
Uma das exposições intitula-se Oficina de Arte para a Democracia e o Protesto Pacífico e, a julgar pelo padrão português de radicalização da nossa vida pública, deve ter sido feita por tenebrosos comunistas e perigosos extremistas. O seu objectivo é, nem mais nem menos, do que ensinar as crianças a protestarem e a reivindicar pelas causas em que acreditam, e sobre os direitos que protegem esse protesto. Não é para adolescentes, é mesmo para as crianças, como se fosse uma extensão da escola básica. Não se pense que é apenas uma apresentação abstracta do tema. É, pelo contrário, uma ilustração de como se pode protestar, como se fazem cartazes, como se usam frases de protesto, como se organizam manifestações, como se usam as novas tecnologias (e as antigas) para defender uma causa.
Uma sala está cheia de faixas e cartazes miniatura, à dimensão das crianças, outra com fotografias das grandes manifestações associadas à queda do Muro. No chão, painéis iluminados com frases do género “De que é que tens medo?”, “Que causas queres apoiar?”, “Que direitos tens’”, “De que modo queres protestar?”, “Que causas te fazem descer à rua?", etc.
Como se percebe, não se trata de formas mais ou menos in camera de protesto, mas da rua. Sim, da rua, essa entidade tão vilipendiada e menosprezada pelos nossos actuais costumes, que deixaram a rua apenas ao PCP e ao BE, ou a movimentos de protesto corporativo. Ou que acham que as manifestações de rua são uma forma antiquada e inútil de protesto, dado o desprezo e indiferença dos governantes e a antipatia dos media e de muitos jovens jornalistas, convém lembrar. Apetece recordar a célebre linha de um poema de Brecht – quando te “vierem buscar”, pode ser tarde de mais.
Seria interessante o PS e o PSD que ainda permanece social-democrata organizarem uma excursão a Berlim para, com as crianças alemãs, perceberem que a “rua” não é um retorno ao PREC, como uma vez me respondeu um dirigente socialista quando lhe perguntei por que razão havendo uma tão grande recusa das medidas governamentais e dada a sua classificação de “muito graves”, o PS não participava em manifestações de rua contra elas. Como, saliente-se, têm feito vários partidos socialistas pela Europa fora, que não abandonaram a “rua” aos partidos mais à esquerda.
Na exposição de Berlim, os cartazes-miniatura também não se limitavam a dizer “as crianças têm direitos”, mas exemplificavam com algumas causas actuais, como a guerra na Ucrânia, os conflitos com os neonazis, e as manifestações do Pegida, tudo questões de grande actualidade e controversas. Numa série de protesto com telemóveis havia ainda pior, como, e fica no original para não chocar os hábitos pudicos do PÚBLICO (que só não se aplicam aos comentários…): “Gegen die NSA! Fuck America!” É muito provável que na preparação da exposição muito destas frases tenham sido originais de crianças envolvidas em trabalhos escolares.
Descontando algum politicamente correcto, presumo que por cá uma exposição deste género incluiria cartazes de “Fora com o Governo”, visto que cartazes de apoio ao Governo só apareceram na rua numa pseudomanifestação irónica, convocada como se fosse a sério e a favor da troika, que se destinava a mostrar que na rua não havia qualquer capacidade de mobilização pró-governamental. Está visto, pois, que os comunistas ou pior ocuparam o Museu Alemão de História.
A segunda exposição temporária do museu levanta outras questões pelas quais tenho um interesse particular, e até, se quiserem, um conflito de interesses. A exposição é sobre a RAF, a Rote Armee Fraktion, ou, como é mais conhecido, o Grupo Baader-Meinhof. É neste momento a principal exposição do museu e retrata as actividades e o impacto do mais activo grupo terrorista alemão de extrema-esquerda, activo na década de 70, em particular no fim da década, e auto-extinto na década de 90. Antes e mesmo depois de ser praticamente desmantelado pela polícia, e da morte na prisão, em circunstâncias que ainda não estão completamente esclarecidas, por “suicídio” dos seus principais dirigentes, a RAF deixou um rastro de sangue, assassinando mais de três dezenas de pessoas e provocando muito mais feridos e destruições.
O seu impacto na sociedade e na história alemã só é comparável na Europa ao das Brigadas Vermelhas em Itália e está documentado no museu por um conjunto de documentos, panfletos, fotografias e objectos, incluindo armas, fragmentos de bombas e veículos. Na origem desta exposição está uma outra feita pela Casa da História de Baden-Württemberg em Estugarda que fez muitas das recolhas originais.
Como recolhedor de documentos da mesma natureza, como, por exemplo, os panfletos extremistas da esquerda e da direita, é para mim exemplar que vários museus alemães façam uma idêntica tarefa de preservação da memória colectiva mais contemporânea, algo muito desprezado no Portugal de hoje. Uma concepção muito conservadora da história faz com que se tenham perdido, desaparecido, destruído e dispersado muitos materiais, por exemplo, posteriores ao 25 de Abril. O período anterior ao 25 de Abril e mesmo os dias da revolução ainda contam com algumas colecções estatais, como a Torre do Tombo, a Fundação Mário Soares ou o Centro 25 de Abril de Coimbra, mas nenhuma destas instituições faz uma recolha activa dos produtos mais contemporâneos da nossa história. Eu faço-o, daí este artigo não ser desinteressado, mas não tenho sobre isso nenhum problema, porque assim alguma coisa se salva.
Dou dois exemplos recentes sobre os quais tenho quase a certeza de não haver, fora do que recolhi, qualquer memória que possa restar: as duas grandes manifestações mais recentes, contra Sócrates em vésperas da sua queda e a do Que Se Lixe a Troika contra o Governo Passos-Portas. Ambas foram manifestações maciças, das mais significativas destes anos de austeridade, e, quando se fizer a história desta época, serão necessariamente lembradas.
Mas imaginemos que um museu português queria fazer uma exposição semelhante à da RAF em Berlim sobre essas manifestações. Tinha sem dúvida milhares de fotos, mas teria os panfletos distribuídos e os cartazes? Não os teria em termos significativos, até porque muitos dos cartazes eram espontâneos, feitos por amadores dedicados que com cartão e marcadores disseram o que queriam dizer. Esses cartazes espontâneos dão mais do que quaisquer outros materiais a voz do protesto destes anos e muitos deles foram deixados na rua ou no lixo depois das manifestações. Foi aí que recolhi, juntamente com voluntários, muito desse material completamente efémero. Por isso, quando alguém quiser fazer uma exposição sobre estes anos duros que os portugueses estão a passar e sobre os protestos que marcam os anos 2008-2015, vai ser possível reconstituir muito da memória física dessas manifestações. É esta a questão para que queria chamar a atenção, visto que o trabalho da memória é um dos aspectos mais significativos da vida cívica, numa altura em que tudo se faz para a destruir e encurtar.
Aqui têm pois dois exemplos alemães que devem ser seguidos, para sermos melhores cidadãos e não ectoplasmas amorfos que passam transparentes sem deixarem a condição de sombras a quem tudo pode ser feito sem reacção ou resposta.